A minha Buenos Aires é menos San Telmo e mais Mataderos

Neste fragmento do livro “Forasteiros”, o autor Rodrigo Barneschi nos conduz às arquibancadas do Nueva Chicago e do Huracán

Futebol Café
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5 min readDec 23, 2022

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Torcida do Nueva Chicago faz festa no estádio República de Mataderos (Crédito: Leo Lepri)

Por Rodrigo Barneschi

2010, agosto. República de Mataderos, Buenos Aires/ARG
Nueva Chicago 1 × 1 Villa San Carlos

A minha Buenos Aires é menos Recoleta e mais Chacarita, é menos San Telmo e mais Mataderos. A minha Buenos Aires abraça os pontos turísticos incontornáveis do Microcentro, mas não se limita ao eixo de avenidas que margeiam o rio da Prata. Uma metrópole que se revela com mais convicção em bairros limítrofes, em ruas que se estendem por quilômetros no sentido oeste, nos parques e praças verdes que não têm lugar nos passeios convencionais dos turistas.

É uma cidade que me oferece um cardápio repleto de jogos entre equipes tradicionais em estádios grandiosos, mas convive bem com minha opção por tomar um ônibus de linha para, mais de uma hora depois, chegar à cancha do Nueva Chicago, em um de seus extremos. É lá, em uma tarde de sábado, que a equipe local encara o Villa San Carlos, pela B Metropolitana (a terceira divisão nacional).

Resolvo tirar fotos da humilde fachada do clube e dos muros que circundam o campo, e sou logo cercado por dois nativos: ¿Eres de la policía?, indagam. “Não, amigos, jamais”. Apresento minha vivência de arquibancada e digo que estou ali para uma maratona de cinco jogos em um fim de semana, um dos quais o confronto de tão pouco apelo midiático em Mataderos.

¿Viniste de Brasil para ver a Chicago?, pergunta um deles, incrédulo.

Sim, o mesmo clube verdinegro que, seis anos antes, assistiu a seis mil de seus torcedores percorrerem 25 quilômetros, até Avellaneda, apenas para se despedirem de uma equipe já rebaixada. O mesmo Torito de tantos episódios de violência nas tribunas e de rivalidades exacerbadas com todas as agremiações da zona oeste.

(Crédito: Leo Lepri)

A desconfiança de meu interlocutor logo cede espaço para a euforia e ele chama outros amigos para eu repetir o relato. Compartilhamos histórias e cervejas, sou presenteado com um cachecol e, o mais importante, recebo o aval para assistir ao jogo no meio da barra brava local.

A partida não vai além de uma somatória de jogadas ríspidas em um gramado precário, mas isso pouco importa: o que me levou a percorrer toda a cidade não foi o futebol em si, mas sim a vibração e a paixão da torcida da casa.

2012, outubro. Tomás Adolfo Ducó, Buenos Aires/ARG
Ferro Carril Oeste 0 × 1 Gimnasia y Esgrima La Plata

Tomás Adolfo Ducó, casa do Huracán, que fica no bairro de Parque Patricios (Crédito: Bruno Rodrigues)

Não há, no mundo, nome de estádio mais poético que Defensores del Chaco, a principal cancha de Assunção. Porém, se o critério for beleza arquitetônica, templo algum se equipara ao Palácio Ducó, casa do Huracán, um dos tradicionais clubes de barrio de Buenos Aires.

Sou o tipo de pessoa que, por vezes, pode não saber dizer como foi o gol que decidiu uma partida, mas, em compensação, consigo enunciar as músicas cantadas pelas torcidas. Meu olhar desloca-se facilmente do campo para a disputa barulhenta do outro lado do alambrado — e de lá não retorna tão fácil.

Piso em Parque Patricios pela primeira vez para acompanhar um duelo da divisão de acesso, entre duas equipes forasteiras, e me apaixono por uma construção que bem poderia ser confundida com um monumento de séculos passados. Enquanto Ferro Carril Oeste e Gimnasia y Esgrima maltratam a bola, nem o aliento das hinchadas é capaz de me demover da obsessão por admirar e armazenar, mentalmente, cada recanto da imponente estrutura.

A fachada externa, ora remetendo a uma universidade centenária, ora a uma arena de touradas. Os grafites que, espalhados pelo bairro, complementam a paisagem. E, acima de tudo, o interior, que oscila entre o rebuscado e o decrépito.

(Crédito: Bruno Rodrigues)

As curvas, com as letras capitulares de um lado e o tão característico globito (escudo da equipe) do outro. A torre central panorâmica. Os resquícios de trapos presos no arame farpado dos alambrados retorcidos. As cadeiras sujas e incapazes de acomodar traseiros generosos. A sincronia na disposição dos paravalanchas — barras de ferro colocadas no meio da arquibancada para segurar justamente o que o nome sugere, as avalanches (de gente). O plano-sequência do filme O segredo dos seus olhos, com Ricardo Darín e Guillermo Francella percorrendo fileiras de racinguistas. Os refletores, que parecem incapazes de dar conta da grandiosidade da cancha. A simplicidade da pintura em branco e vermelho.

O Palácio Ducó é uma obra de arte, zelosa de suas imperfeições. E é o ícone pouco visitado de uma Buenos Aires que se equilibra entre a decadência e a vanguarda.

Os textos acima são fragmentos do livro “Forasteiros — Crônicas, vivências e reflexões de um torcedor visitante”, do jornalista Rodrigo Barneschi, publicado em 2021 pela Editora Grande Área. A publicação desses trechos no Futebol Café conta com a autorização do autor. Para comprar:

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