Allende era do Everton

O Futebol Café publica um conto de “Elogio do Maracanazo”, livro do chileno Víctor Hugo Ortega traduzido pela Dolores Editora

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4 min readSep 10, 2021

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Salvador Allende, que se suicidou em 11 de setembro de 1971 durante bombardeio ao Palácio de la Moneda (Crédito: César Zárate/Icônicos do Fut)

Por Víctor Hugo Ortega

Foi num sábado de abril de 2013, às 5h47 da manhã, no Terminal San Borja de Santiago do Chile.

“Que porra é essa, mentiroso filho da puta!”, disse o torcedor do Colo-Colo para o de La U. “Ah, sou eu o mentiroso?! Otário”, respondeu o outro. “Vá chorar na cama, arrombado”, continuou o primeiro. “Sai andando, desgraçado, vaza, antes que eu meta a mão na sua cara”, continuou o segundo. “Eu saio se eu quiser, pau-mandado do caralho”, gritou o colocolino, afastando-se do banco onde estava o torcedor azul. “Dá pra ver que é um vacilão de merda”, arrematou o torcedor de La U.

Ficaram se encarando a distância e continuaram se xingando desde a plataforma 14, onde tinha chegado o torcedor do Colo-Colo, até a 29, onde estava o de La U. Os seguranças andavam pelo lugar atentos ao que poderia acontecer.

Eu estava quase dormindo na plataforma 31. Já fazia uma hora que eu estava esperando pelo ônibus 80 e não conseguia mais segurar o sono. Os gritos me acordaram. Um dos seguranças se aproximou e perguntou: “Qual ônibus tá esperando, rapaz?”. “O de Talagante que passa por Melipilla”, respondi. “Esse chega na plataforma 42 daqui a uns dez minutos.” “Ah, muito obrigado, pelo menos falta pouco”, falei.

Ele sentou do meu lado e contou que os torcedores estavam brigando havia duas horas. “Primeiro falavam civilizadamente, sentados um do lado do outro, mas depois começaram a se empurrar.” “E o senhor sabe por quê?”, indaguei. “O que aconteceu é que o torcedor do Colo-Colo tava se gabando de ter uma faixa com o rosto de Salvador Allende e que, pelo visto, diz: ‘Nosso maior torcedor’. Aí o torcedor de La U ficou puto e começou a dizer que não tinha nada a ver, que Allende era chuncho desde os cinco anos de idade. Mas o do Colo-Colo também se exaltou e disse que era mentira, que Allende tinha confessado seu amor pelo Colo-Colo em 1973, quando encontrou com o time na Argentina, após o empate com o Independiente na final da Libertadores. Então Allende seria Colo-Colo, não La U.” “E o que aconteceu depois?”, perguntei de novo. “Aí começaram a confusão, pô, mas só gritaria e ameaças, nada mais.” Fiquei pensando na cena e ele começou a rir.

A seguir, o rádio que levava na cintura começou a fazer barulho. Não consegui decifrar o que diziam. Ele respondeu “10–24”, código que também não consegui entender. “Seu ônibus tá chegando, rapaz, pode ir lá esperar na 42”, falou. Agradeci de novo e, antes de ir, não pude evitar perguntar: “O que o senhor acha, Allende era Colo-Colo ou La U?”. “Meu filho, Allende era Everton.” “Sério?” “É, sério.” “E como sabe disso?” “Sei porque sou Everton, meu filho, e todos nós, que torcemos pro Everton, sabemos disso. Allende é nosso torcedor mais ilustre”, asseverou o homem, que se despediu e saiu rumo à escada rolante.

Andei até a plataforma 42, imaginando Salvador Allende usando a camisa azul e a faixa amarela, sentado na arquibancada do estádio Sausalito, com as cores do Everton de Viña del Mar.

Elogio do Maracanazo, de Víctor Hugo Ortega, é a primeira tradução da Dolores Editora (do espanhol para o português). É também a vontade de se aproximar dos vizinhos continentais. Conhecer personagens, compartilhar anedotas, sentir as mesmas emoções.

O conto que dá nome à obra lidera a coleção de 13 textos do autor chileno, que vai da viagem de amigos chilenos ao Uruguai em busca de Ghiggia (nosso algoz!) ao fotógrafo que revela um outro Bielsa. Da briga para saber o time de Allende, dos beijinhos na estátua de Gabriela Mistral ao futebol de bairro, com a vida girando na várzea, no bar e até na capa de jornal. Do gol de Sierra encomendado nas orações ao homem que confessou a troca de time a seus craques.

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