Livro sobre Argentina x Inglaterra de 1986 não é sobre futebol, mas sobre a memória, diz autor

Escritor Andrés Burgo falou ao blog sobre sua obra que conta a história de um dos jogos mais célebres da história das Copas

Bruno Rodrigues
Futebol Café
6 min readJul 8, 2016

--

Em junho de 2016, a Argentina comemorou os 30 anos do título mundial conquistado no México, sobre a Alemanha, no Estádio Azteca. Porém, para os torcedores argentinos e também para outras pessoas que acompanharam aquela Copa do Mundo, o grande jogo da Albiceleste no torneio não foi a decisão com os alemães, mas sim o duelo diante da Inglaterra pelas quartas de final. O dia da Mano de Dios, o dia do Gol do Século, o dia da vingança pelas Malvinas. O dia de Diego Armando Maradona.

Tamanha é a importância do triunfo contra os ingleses para a história do futebol no país que o jornalista e escritor argentino Andrés Burgo decidiu contar todos os detalhes daquele 22 de junho no livro El Partido, lançado recentemente pela Editora Tusquets, da Argentina. Para a obra, Burgo conversou com uma série de personagens que estiveram no Azteca e presenciaram de perto o jogo mais memorável da carreira do Pibe de Oro.

Mas o livro não é um relato apenas sobre Maradona e seus feitos, algo que Burgo procura deixar claro toda vez que fala sobre o trabalho. El Partido é um relato completo de tudo o que cercou a vitória dos hermanos, passando por histórias curiosas como, por exemplo, a da camisa usada pelos argentinos no 2 a 1 diante da Inglaterra — os uniformes foram comprados na própria Cidade do México e confeccionados de última hora para atender a um pedido do técnico Carlos Bilardo, que não queria seus atletas utilizando as mesmas camisas do jogo anterior, contra o Uruguai, por conta do peso do suor.

Na entrevista abaixo, Andrés Burgo fala a respeito de como surgiu a ideia do livro, a questão nacionalista da Guerra das Malvinas, como encaixou Maradona na narrativa mesmo sem tê-lo entrevistado e sua visão sobre a literatura de futebol na Argentina atualmente.

A capa de ‘El Partido’, com foto de Jorge Valdano (Crédito: Divulgação)

- Quando e como surgiu a ideia de escrever o livro? E por que contar a história de uma partida e não a história de toda a Copa do Mundo?

O livro surgiu porque, a princípio, queria escrever sobre todo o Mundial de 1986. Mas me pareceu uma história muito longa, inabarcável, e não se poderia colocar um foco de atenção em algo concreto. Ficaria algo grande demais e preferi colocar o foco de atenção em algo particular, por isso me pareceu melhor a partida entre Argentina x Inglaterra do que todo o Mundial.

- Argentina x Inglaterra em 1986 é o jogo mais lembrado do Mundial, é o jogo “pelas Malvinas”, mas fundamentalmente é o grande jogo da vida do Maradona. Por que Diego não está na capa do livro? Foi uma decisão proposital colocar a foto de outro personagem (Jorge Valdano)?

Maradona não está na capa porque é uma decisão da editora. Eu não falei com o Maradona. Há tudo o que Maradona falou nos últimos 30 anos, mas não falei com ele. Assim seria pouco honesto de nossa parte ter colocado na capa o Maradona.

- Você já declarou que seu livro não é uma obra sobre Maradona ou sobre sua personalidade, mas um relato amplo de tudo o que ronda aquela partida. Como fazer com que um livro sobre essa partida em especial não seja um livro sobre Diego e, ao mesmo tempo, que tenha sua participação mesmo sem ser entrevistado?

Eu não falei com Maradona, mas tenho tudo o que ele disse nos últimos 30 anos. E para mim ele já disse tudo. Com isso posto, a mim não me interessava fazer um livro que dependesse da palavra de Maradona. Do primeiro gol me interessava a opinião do árbitro, do bandeirinha, do fotógrafo que tem a foto do punho dele socando a bola, dos torcedores, dos jogadores ingleses, de (Peter) Shilton, dos jornalistas se viram ou não a mão, dos narradores que estavam de frente para a TV, dos ex-combatentes das Malvinas que estavam vendo a partida. Ou seja, me interessava fazer uma história coral que sobrepassasse a participação de Maradona. Que todos eles falassem de Maradona e de como viveram esse dia.

- Já se passaram 30 anos do épico triunfo no Azteca e seu livro está carregado de anedotas sobre (Carlos) Bilardo, as superstições da equipe, a concentração no hotel e no vestiário. Os relatos dos protagonistas encontram facilmente um caminho comum ou há ruídos entre essas memórias dos entrevistados?

Não é só um livro sobre futebol, é um livro sobre a memória. Passou muito tempo, 30 anos. É normal que a gente vá lembrando versões distintas de um mesmo fato. No livro há um exemplo que é o tema da camiseta que Argentina usou neste dia, improvisada. Falei com seis pessoas que me contam seis versões diferentes. Não são versões contrapostas, mas que não coincidem em alguns casos. Mas passou muito tempo, inclusive há muitas opiniões contraditórias de um mesmo personagem sobre um mesmo fato. Mas isso é porque são futebolistas e a todo tempo estamos entrevistando eles. Existe uma questão de arquivo, digamos. É fácil, entre aspas, ver como eles mudaram de opinião. Isso acontece com todos.

O gol de mão, que abriu o caminho para a vitória argentina por 2 a 1

- Qual foi a história que mais te surpreendeu entre os relatos ouvidos?

Creio que o relato que mais me surpreendeu foi o de um ex-combatente das Malvinas, um futebolista, goleiro do Huracán e do San Lorenzo, que depois das Malvinas não pôde voltar a jogar. Porque uma guerra muda a sua vida, muda seu foco, muda tudo. E conta como naquele Argentina x Inglaterra sentiu uma coisa muito forte. Terminou o jogo e ele se pôs a chorar por três horas e que pôde voltar a olhar nos olhos da sua família, dos seus amigos, pois sentiu que finalmente teve uma espécie de revanche. Que o que tinha perdido nas Malvinas, recuperou em parte graças a esse dia.

- O tema da Guerra das Malvinas é um fator central da partida contra a Inglaterra. O que você sentiu dos entrevistados sobre relembrar essas sensações e quem foram os jogadores e profissionais que tiveram papel determinante para que a questão nacionalista pudesse ser utilizada a favor da equipe?

Os jogadores e os profissionais envolvidos tiveram um papel mais ou menos similar (nessa história da revanche pelas Malvinas), digamos. Claro que Maradona ocupa um papel determinante por seus gols e por ser o capitão da equipe. Mas não é que houve um encontro durante a semana para falar sobre o tema das Malvinas.

O segundo de Maradona, considerado o mais belo gol de todos os tempos

- Por fim, tenho a impressão de que na Argentina o gosto por livros faz com que muitas obras sejam produzidas e, inclusive, sobre os mais variados aspectos do futebol: jogos, treinadores, crônicas, times pequenos, grandes conquistas… Você como argentino e autor de alguns livros, tem esta mesma impressão de que o país é um lugar fértil para produzir e consumir a literatura do futebol?

Não havia muitos livros de futebol na Argentina há cinco anos. Desde então que se começou a produzir uma enorme quantidade de livros de futebol. Existe de tudo, é claro: livros muito bons, livros bons, livros regulares, livros que não valem à pena. Mas eu celebro e dou as boas-vindas a esse tipo de literatura futeboleira, que na verdade não existia até algum tempo atrás. Em tempos nos quais os jornais vendem cada vez menos, dá a impressão de que os livros são produzidos cada vez mais.

--

--