Joe Gaetjens: O haitiano que virou herói nos EUA ao marcar o gol da zebra contra a Inglaterra em 1950

Protagonista de uma das grandes histórias das Copas do Mundo, atacante desapareceu durante a ditadura de Papa Doc no Haiti

Bruno Rodrigues
Futebol Café
14 min readNov 25, 2022

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Joe Gaetjens, autor do gol de uma das maiores zebras da história das Copas (Crédito: Fifa.com)

Harry, esse Gaetjens… ele marcou alguns dos golaços mais incríveis que já vi.

– Walter Bahr, meio-campista dos EUA em 1950

Por Toni Padilla

Joseph Gaetjens tinha tudo para ser o protagonista de uma daquelas histórias que dão vida ao mito do sonho americano: a história do lavador de
pratos de um bar pé-sujo do Harlem que acaba marcando o gol decisivo
em uma das façanhas esportivas mais impactantes da história. Conhecido
como Joe Gaetjens em campo e como “Ti Joe” na família e entre amigos,
o garoto viveu com paixão cada dia de seu american dream. Só havia um
detalhe: ele não era norte-americano.

Joe Gaetjens era haitiano. Em algum momento, Deus, a história ou
o destino decidiu que os Estados Unidos seriam recompensados por sua
decisão de deixar de ser uma colônia britânica e se tornariam uma nação
próspera. Depois, esse mesmo Deus, a história ou o destino decidiu que
o Haiti não seria recompensado por ser o primeiro Estado majoritariamente negro a livrar-se do jugo europeu. Pelo contrário, os movimentos de libertação do país deram lugar a todo tipo de calamidades: seguiram-se tiranias, epidemias, terremotos e pobreza. No Haiti, os heróis têm um final trágico. Nos Estados Unidos, um final feliz. Gaetjens gravitou entre esses dois mundos.

A história de Ti Joe não deixa ninguém indiferente. É maravilhosa e
cruel. Alegre e muito triste.

Gaetjens marcou aquele gol, o gol do qual não há registro cinematográfico, o gol com o qual os Estados Unidos da América derrotaram a Inglaterra
em uma partida de futebol. “É como se a Universidade de Oxford ganhasse
dos Yankees num jogo de beisebol”, escreveu nesse dia Dent McSkimming, o repórter do St. Louis Post-Dispatch que pagou a viagem ao Brasil do próprio bolso e testemunhou a façanha no velho estádio de Belo Horizonte.

Aquele gol, o gol do “milagre na grama” do esporte norte-americano,
só é igualado pelo “milagre no gelo” de um grupo de jovens amadores que
derrotou a seleção soviética de hóquei em 1980. Do milagre no gelo sobreviveu tudo: o jogo inteiro, fotos, entrevistas e arquivos de áudio. Do milagre na grama, no entanto, não restou quase nada. Sabemos, por exemplo, que a foto mais conhecida da partida é uma fraude. Nela vemos Gaetjens no momento em que, após bater o goleiro Bert Williams, que está olhando para o seu gol, a bola atravessa a rede. O inglês parece relaxado. Na verdade, a jogada havia sido previamente anulada por impedimento, mas Gaetjens finalizou à queima-roupa e a bola transpôs a rede. Havia um buraco nela ou foi a força do chute, a centímetros da linha do gol? Em todo caso, alguém adulterou a imagem e recolocou a bola dentro do gol. Era necessária uma foto do gol e a única que existia era muito ruim e desfocada, e havia sido tirada quando o lance já tinha terminado, com o goleiro de joelhos e a bola ao seu lado. Assim, a primeira imagem foi manipulada, e a fotografia de uma chance perdida foi durante muito tempo considerada a imagem daquele famoso gol de Ti Joe.

A foto que, por muito tempo, acreditou-se ser do gol que Joe Gaetjens marcou contra a Inglaterra em Belo Horizonte (Crédito: Fifa.com)

Joe Gaetjens tinha cara de bonachão. Um nariz largo e o olho esquerdo
um pouco fechado. Sua cor de pele e suas características sugeriam certa
mestiçagem no sangue de seus ancestrais. Ele costumava aparecer nas fotos com um sorriso sincero.

Era um bom rapaz e ninguém falava mal dele. Se alguém o fazia, provavelmente, era um defensor adversário vítima da habilidade de Gaetjens.

Fora de campo, ele era gentil e tranquilo, mas quando calçava as chuteiras,
transformava-se num adversário assustador. A competitividade e a cor da pele podem ter vindo de seu avô Thomas Gaetjens, que deixou Bremen no século XIX rumo a Porto Príncipe, com um papel que, segundo consta, atribuía a ele poderes para representar o rei da Prússia no Haiti. Apesar de soar mais como uma lenda apócrifa, o certo é que Thomas Gaetjens chegou ao Haiti vindo de Bremen, fez fortuna e casou-se com uma bela mulher negra.

Ti Joe cresceu correndo atrás de uma bola, apesar de ter frequentado
mais o pátio da escola do que as ruas. Teve uma infância feliz. Sua família
tinha dinheiro. Teve uma boa educação e passava os dias jogando com
a irmã Mireille no jardim da família. As primeiras partidas foram entre
irmãos: os quatro irmãos contra as três irmãs e duas primas. Eles jogavam descalços. Embora os pais insistissem na educação, permitiam que Joe
aprendesse como se deve acariciar uma bola com os pés.

Com 14 anos, ingressou no Étoile Haïtienne, graças ao melhor amigo
de seu pai, Daniel Beauvoir, titular na defesa do clube, que utilizava uma
camisa branca com uma estrela preta no peito. Ti Joe rapidamente se destacou e, aos 18 anos, liderou uma virada histórica contra o arquirrival, o
Racing, que o catapultou para a fama: perdiam por 3 × 0 aos dez minutos
do segundo tempo e acabaram vencendo por 4 × 3. Era 1942. Nesse mesmo ano, seus futuros companheiros de seleção dos Estados Unidos estavam
lutando na Segunda Guerra Mundial. Os Gaetjens viviam felizes.

No Haiti, porém, a felicidade dura pouco. Alguns anos mais tarde, Ti
Joe decidiu continuar seus estudos em Nova York, onde já vivia um de
seus irmãos. Insatisfeito com a situação econômica e política cada vez mais
tensa em seu país, deixou Porto Príncipe em 1947. Graças ao dinheiro da
família e a uma bolsa de estudos, ele pôde se matricular na Universidade
Columbia. Entretanto, a vida em Nova York era muito cara, mesmo para
o filho de uma boa família haitiana, de modo que o garoto criado com
empregada e jardineiro começou a ganhar a vida lavando pratos no Rudy’s,
um boteco de comida espanhola no cruzamento da rua 11 com a Lenox
Avenue, no Harlem.

Mas Ti Joe havia nascido para jogar futebol, não para lavar pratos ou
estudar. Nas fotos em que aparece com uniforme de jogo, ele tem um semblante sério. Não era mais o rapaz tranquilo que posava pulando e sorrindo em frente aos monumentos mais famosos dos Estados Unidos nas fotos enviadas para casa. Em Nova York, Ti Joe abriu o próprio caminho à base de gols. Foi assim que conheceu Boston, Chicago e Filadélfia. Graças ao futebol.

Logo juntou-se ao Brookhattan-Galicia, um dos times da moda na
época. Já em 1948, seu faro artilheiro levou o clube à final da National
Challenge Cup, perdida para o Simpkins-Ford, de St. Louis, a única cidade
que fazia sombra a Nova York como a mais forte no mundo do soccer. O futebol norte-americano era fragmentado em mil ligas regionais e repleto de equipes representando diferentes comunidades de imigrantes: ucranianos, poloneses, alemães, irlandeses… O Brookhattan-Galicia era de um empresário de origem galega, Eugene “Rudy” Díaz, grande amante do futebol e proprietário de diversos negócios locais, além de uma importadora. Díaz havia acrescentado a palavra “Galicia” ao nome do clube em homenagem às suas origens e estava comprometido em construir um time vencedor. Atraía muitos torcedores de origem hispânica. Pagava 25 dólares por jogo a Gaetjens, e o atacante retribuía com gols. Em 1948, foi o artilheiro da liga. Seu nome ganhou peso e ele acabou convidado para as sessões de treinamento que a federação organizou em St. Louis com o intuito de selecionar os melhores jogadores para a Copa do Mundo do Brasil. Gaetjens não tinha passaporte dos Estados Unidos, só os documentos de residência legal como estudante bolsista. A polêmica sobre a legalidade da convocação de Ti Joe segue até hoje. Seja como for, foi um bom negócio para os norte-americanos. Como quase sempre.

Foto de Joe Gaetjens, parte do “Livro Ilustrado Football World Cup 1950”, projeto de pesquisa de Heriberto Ivan Machado, Rogério Michailev, Luiz Evaristo e Armando Kolbe Júnior

Os Estados Unidos se classificaram para o Mundial, apesar de terem sido humilhados pelos mexicanos nas Eliminatórias. A Fifa tinha dado às equipes da região duas vagas diretas, decididas em um torneio na Cidade do México em setembro de 1949. O Canadá se retirou e restaram três seleções. O México venceu os ianques duas vezes (6 × 0 e 6 × 2), e a segunda vaga foi disputada entre Estados Unidos e Cuba. A primeira partida terminou 1 × 1. A segunda, 5 × 2 para os norte-americanos.

As goleadas sofridas no México alertaram a federação, que organizou essas jornadas em St. Louis para tentar descobrir novos talentos entre as numerosas ligas locais. Com o futebol fragmentado em mil competições diferentes, sempre surgiam garotos novos. Walter Bahr, Gino Pariani, Harry Keough, Frank Borghi, Benny McLaughlin, Frank Wallace, John Souza e Charlie Colombo passaram pelo crivo e continuaram na seleção. Em St. Louis, Walter Giesler, o presidente da Ussfa (United States Soccer Football Association), e seu treinador Bill Jeffrey acrescentaram Ed McIlvenny, Ed Souza, Joe Maca, Robert Annis, Geoff Coombes, Adam Wolanin e Gino Gardassanich ao grupo. E também Ti Joe.

Gaetjens impressionou todos. Walter Bahr, um dos campeões da Copa de 1948 com o Simkinds-Ford, já havia informado seus companheiros de equipe sobre o fenômeno antes das sessões de preparação: “Ele marcou alguns dos golaços mais incríveis que já vi.” Gaetjens era um goleador nato. Tornou-se titular de uma seleção que teve apenas dois amistosos para se preparar para o Brasil. O primeiro terminou com uma goleada sofrida por 5 × 0 contra o Besiktas, da Turquia, que fazia uma excursão pela América, resultado que ligou o alerta. Depois teve um amistoso em Nova York contra um combinado de jogadores da liga inglesa, com o famoso Stanley Matthews. Os ingleses venceram por 1 × 0 e Walter Giesler suspirou um pouco mais aliviado, apesar de achar difícil oferecer alguma resistência na Copa do Mundo, pois os problemas só cresciam. Benny McLaughlin, uma de suas estrelas, por exemplo, não conseguiu entrar no avião porque não foi liberado por seu empregador. Pior ainda: ele marcou a data de seu casamento para o meio do Mundial. Jack Hynes, outro dos melhores jogadores, criticou os treinos e um jornal publicou suas palavras. Também ficou em solo norte-americano.

Cerca de catorze dias antes da primeira partida, contra a Espanha, a seleção deixou Nova York com uma escala em Porto Rico, onde passou doze horas devido a um problema mecânico com o avião.

No dia 25 de junho veio a estreia em Curitiba. Giesler e Jeffrey não estavam muito confiantes. Seus três jogos seriam disputados em cidades muito distantes entre si: Curitiba, Belo Horizonte e Recife. Tinham o pior calendário e o maior número de quilômetros a percorrer. Além disso, os jogadores ficavam acordados até tarde todas as noites bebendo cerveja e indo atrás de garotas. Giesler se lamentava: “Não somos marinheiros nem soldados para ficar indo atrás de mulheres”. No entanto, os inexperientes Estados Unidos abriram o placar graças a um gol de Gino Pariani, que surpreendeu o goleiro Eizaguirre. A equipe das listras e das estrelas se fechou como pôde na defesa e resistiu até os 36 minutos do segundo tempo. Mas a Espanha se inspirou e evitou o desastre: três gols em oito minutos, de Igoa, Basora e Zarra.

Quatro dias depois, estavam cerca de mil quilômetros ao norte, em Belo Horizonte, para enfrentar os ingleses, no que muitos consideravam o duelo mais desequilibrado de toda a Copa do Mundo. “A cidade inteira sabe que os norte-americanos, ao contrário de seus adversários, ficam acordados a noite toda. Para o espanto dos cidadãos de Belo Horizonte, os jogadores passeiam pelas ruas até as seis da manhã”, escreveu O Globo Sportivo antes da partida. Os ingleses preferiram se isolar nas montanhas, nas instalações de uma empresa de mineração britânica. Tinham acabado de derrotar os chilenos no Maracanã. Eram profissionais. Eram os inventores do futebol. Eram os embaixadores da terra do futebol. Ninguém duvidava de que o jogo terminaria em uma goleada, e as casas de apostas pagavam quinhentos para um na vitória dos Estados Unidos. A Inglaterra mandou a campo alguns dos jogadores mais famosos da época, apesar de Stanley Matthews ter ficado nas arquibancadas, poupado para partidas mais importantes. Seus adversários naquele dia tinham uma escalação composta por um professor, um funcionário de um cemitério, um decorador de interiores, dois carteiros, um mecânico, um maquinista, um operário, um carpinteiro e um estudante e lavador de pratos — Joe Gaetjens. O único a ganhar a vida com o futebol era John Hynes, um escocês que chegou lá aos Estados Unidos com 13 anos, apesar de mal conseguir pagar as contas com o que recebia de seu clube, o New York Americans.

A equipe dos Estados Unidos que enfrentou os ingleses no Independência (Crédito: Fifa.com)

E então começou a partida entre profissionais e amadores. Noventa minutos depois, os amadores haviam derrotado os profissionais. O resto é lenda.

“Bahr chutou da direita. Foi uma boa batida, mas o goleiro se preparava para pegar a bola. Gaetjens estava na marca do pênalti e mergulhou para conseguir tocar nela”, recordou Harry Keough. Walter Bahr admitia que “meu chute estava indo para a direita, mas não entraria. Foi mérito de Joe”. E de Frank Borghi, o goleiro norte-americano que trabalhava dirigindo o carro da agência funerária da família em St. Louis, que pegou absolutamente tudo. “Se jogássemos aquela partida outro dia, levaríamos dez. A sorte sorriu para nós”, sempre reconheceu Bahr. A Inglaterra teve muitas chances para marcar. Os ianques, poucas. Mas fizeram o único gol do jogo.

Apesar de a imprensa britânica ter noticiado que o chute desviou acidentalmente em Gaetjens, os americanos negavam. “Você tem que saber como era Joe. Ele buscou aquele gol”, afirmou Keough. “Joguei com ele por cerca de cinco anos e foi o atacante mais acrobático que eu já vi. Ele estava sempre tentando finalizar, de qualquer forma. Fazia gols impossíveis. Ele buscou aquela bola, estava sempre pensando em finalizar. Foi um arremate estranho, mas não foi uma casualidade”, defendeu quase que com raiva Walter Bahr.

Quando terminou a partida, Ti Joe se viu cercado por brasileiros eufóricos que entraram em campo para levantá-lo em desfile como se fosse um general vitorioso. Ele quase caiu. Está sorrindo nas fotos, animado e feliz, enquanto um torcedor corpulento e de bigode e um garoto negro de gravata o carregam nos ombros. Dizem que a noite foi daquelas inesquecíveis. Depois, a equipe perdeu para o Chile e foi eliminada.

Antes de voltar para Nova York, um emissário lhe ofereceu uma nova vida: transferir-se para o Racing Club de Paris. O gol de Belo Horizonte transformou Ti Joe em uma estrela. Assim, durante três anos, Gaetjens viveu em Paris como jogador profissional. Não decepcionou, apesar de não ter se tornado a grande estrela que todos pensavam que viria a ser. Em 1954, decidiu voltar para casa, para o Haiti. Fazia sete anos que ele não via os parentes.

Na chegada, uma multidão o esperava. O gol contra os ingleses fez dele o herói local, apesar de alguns meios de comunicação terem noticiado que Gaetjens era argentino. O comitê de boas-vindas foi curioso: familiares, amigos, jornalistas e torcedores encontravam-se atrás de um cartaz que dizia: “O melhor jogador do Haiti, dos Estados Unidos e do mundo inteiro”. Também estavam presentes seus ex-companheiros do Étoile Haïtienne, que pediram para que jogasse com eles naquela noite em uma partida contra o rival de sempre, o Racing. Gaetjens entrou em casa, beijou os pais, os irmãos e se preparou. O técnico da seleção do Haiti, Paul Baron, advertiu-o sobre o tipo de confronto que estava prestes a disputar. Ti Joe vinha de lugares onde se jogava um futebol organizado e preciosista, mas o futebol local tinha virado um jogo de arruaceiros. O Étoile Haïtienne perdeu e o Racing desceu o sarrafo em Gaetjens, que decepcionou. Acabava o sonho norte-americano e começava o inferno haitiano.

Joe Gaetjens voltava a um país que caminhava em direção ao buraco. A situação política era cada vez mais tensa. Ele tentou criar seu próprio espaço vital. Casou-se com uma amiga de infância que reencontrou na igreja, começou a dar aulas de futebol e trabalhou com afinco em uma empresa de pasta de dentes, a Colgate-Palmolive. Em 1956, seu filho nasceu e ele pendurou as chuteiras no time de sempre, o Étoile Haïtienne. Foi técnico por alguns meses e trabalhou com a seleção local, inclusive atuando por ela, até que, em 1957, abandonou definitivamente o futebol. Nesse mesmo ano, ocorreu o golpe de Estado que depôs o presidente, Paul Magloire. François “Papa Doc” Duvalier, com o apoio do exército, venceu as eleições posteriores contra Louis DeJoie, que denunciou a manipulação na contagem dos votos, mas viu o rival assumir a presidência mesmo assim. Era o começo do fim.

Duvalier iniciou uma purga no Exército para colocar seus homens em posições-chaves. Os apoiadores mais radicais formaram uma milícia chamada Tonton Macoute [“bicho-papão”, em criolo haitiano], que aterrorizava os opositores. Começaram as prisões e as batidas noturnas. DeJoie convocou uma greve, a que Gaetjens aderiu. Fechou sua loja e escapou por pouco de uma surra quando os Tonton Macoute o obrigaram a abrir as portas.

Ti Joe tentou seguir em frente com a vida. Comprou uma casa e criou os filhos o melhor que pôde, mas todos os dias um amigo ou membro da família era preso. Ou desaparecia. A cidade se tornou o reino do medo e dos rumores. Muitos membros da família Gaetjens, todos considerados opositores, fugiram, e seus irmãos, Jean-Pierre e Fred, começaram a colaborar com as guerrilhas contrárias a Papa Doc. Isso o colocou em uma situação delicada, mas Joe disse aos seus que nunca mais deixaria o Haiti. Em dezembro de 1963, organizou uma festa para inaugurar a nova morada. Poucos meses depois, em 1964, François Duvalier se autoproclamava presidente vitalício. O círculo estava se fechando.

Em 8 de julho de 1964, a família Gaetjens recebeu um telefonema. Um amigo que fazia parte do Tonton Macoute disse a eles que estavam procurando Ti Joe para prendê-lo. Joe não atendia o telefone no negócio da família, então todos começaram a procurá-lo por toda parte. Sua mãe, Marianne, correu até a loja e a encontrou fechada. Esperou na porta, sem saber que os milicianos já haviam passado por lá. Um deles esperava escondido, vigiando. Logo depois, Ti Joe chegou em seu carro. Viu a mãe nervosa e, sem descer, perguntou que diabos estava acontecendo. Ali mesmo, o miliciano que guardava a cena apareceu, apontou a arma para Gaetjens, entrou no veículo e mandou ele acelerar. Sua mãe foi a última pessoa a vê-lo com vida. Perdeu-se o rastro do futebolista. Nunca se soube o que os Tonton Macoute fizeram com seu corpo.

Durante meses, a família tentou de todas as formas descobrir o paradeiro dele. A mãe chegou ao ponto de implorar pessoalmente a François Duvalier por clemência, assistindo uma vez por ano a uma recepção organizada pelo ditador para indultar alguns dos detentos. Ele liberava pequenos ladrões e golpistas, mas não opositores. Quando ouviu o nome Gaetjens da boca da senhora, expulsou-a da sala. No fim, aceitaram a realidade: Ti Joe não voltaria. Fugiram, então, para o exílio e acabaram nos Estados Unidos, onde organizaram uma fundação com o nome Gaetjens para denunciar o desaparecimento de milhares de haitianos. Um de seus eventos foi um amistoso do New York Cosmos, com Pelé em campo.

Arquivos da CIA tornados públicos finalmente ajudaram a lançar luz sobre seus últimos dias. Um documento datado de 13 de julho de 1964 cita declarações de um informante que afirmava que o próprio Papa Doc visitou a terrível prisão de Fort Dimanche. Vinte e três prisioneiros torturados anteriormente foram colocados em um pátio. Estavam com as mãos e os pés amarrados, descalços e apenas com suas roupas íntimas. Entregaram a Duvalier uma submetralhadora; ele deu uma rajada e matou todos. Um deles era, supostamente, Gaetjens. A denúncia de um colaborador da CIA é a única possível referência minimamente confiável. A família a considera como certa.

O texto acima integra o livro “Brasil 50”, do jornalista e escritor catalão Toni Padilla, traduzido para o português pela Editora Grande Área. Para comprar:

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