Maradona, os ingleses e um gol para sempre: o relato oral do Gol do Século

Trecho inédito em português de “O Jogo”, livro sobre o histórico Argentina x Inglaterra de 1986, traduzido pela Dolores Editora

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15 min readDec 15, 2022

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A capa de “O Jogo”, traduzido e publicado no Brasil pela Dolores (Crédito: Dolores Editora)

Por Andrés Burgo

Então o Azteca se ilumina, como se o resto do mundo ficasse às escuras. Maradona desfila pelo gramado e ninguém o detém: 52 metros, 44 passos, 10.6 segundos, 14,4 quilômetros por hora, doze toques com a perna esquerda, cinco ingleses eliminados em uma perseguição autodestrutiva (Beardsley, Reid, Butcher, Fenwick e Shilton, os capitães Ahab do Azteca), e outros dois rivais que querem pará-lo, mas não o alcançam (Hodge, no começo da jogada, e Stevens, no final). Na lista dos enganados também deveriam ser inclusos dois argentinos, Valdano e Burruchaga, que, por decisão de Maradona, cum­prem o papel de isca para despistar os rivais, sempre à espera de um passe que não chega. Como é ser coadjuvante da jogada de todos os tempos? Como se aproveita — e como se tolera — a bomba atômica dos gols?

“Eu recebi a bola de Batista. Se tivesse chutado para o lado, era lateral para a Inglaterra, mas não, em vez disso passei a bola para o melhor”, diz Enrique. “Não sou idiota, escolhi o melhor.”

“O que me deixou assombrado com relação a Marado­na era querer a bola o tempo todo”, lembra Fenwick. “Não lhe importava a tensão ou onde a jogada se desenrolava: sempre queria a bola, era valente. Eu nunca havia deparado com alguém assim, estava em um planeta diferente. Era muito pequeno, mas largo. Era forte o bastardo.”

“Quando Maradona começou a jogada”, conta Reid em seu livro, “eu estava ali, mas ele girou entre a minha posição e a de Beardsley. As pessoas disseram que se eu não estivesse lesionado poderia tê-lo agarrado, mas não havia como. Essa partida eu joguei com dor no tornozelo. Depois fiz um exame e deu que eu tinha uma fratura por estresse. O efeito da emoção, da adrenalina e da atmosfera do Azteca é incrível: joguei com uma perna quebrada.”

“Quando dominou a bola, Maradona estava de costas para mim”, escreveu Hodge. “Fez uma volta para sair da mar­cação de Reid e Beardsley e escapou. Foi estranho, mas eu não tive velocidade para retroceder e alcançá-lo. Não fui capaz. Pensei que, pelo mau estado do gramado, ainda faltava um longo caminho até a nossa meta.”

Maradona começa sua investida solitária com três to­ques, uma pisada sobre a bola, um giro de bailarino e abra­cadabra: ficam para trás Beardsley e Reid. O primeiro, como bom atacante, não defende com tanta determinação: logo se desconecta da jogada. Já Reid, meio-campista e com obrigação de marcar, não se resigna e começa a persegui-lo. Maradona joga sob uma lei da gravidade diferente. Não toca a bola, a gal­vaniza. Sua próxima barreira é Butcher, o primeiro zagueiro que o recebe em território inimigo, como se fosse um guarda real que vigia o palácio de Buckingham.

“A mão de Deus foi uma coisa anormal. Eu fiquei mais irritado pelo segundo gol porque escapou de mim”, reconheceu Butcher ao Daily Mail, em novembro de 2008, e à Four Four Two, em fevereiro de 2009. “Escapou de todos os jogadores ingleses uma vez, mas, de mim, duas. Pequeno bastardo. De mim ele fugiu no começo e no final, mas culpo outros jogadores. Reid correu tudo o que pôde, quase que acaba saindo do campo de tanto correr.”

“Vejo que Diego deixa no caminho dois ou três ingleses, e se aproxima um zagueiro meio pesado, Butcher”, diz Giusti.

“Então vejo Valdano, sozinho pela esquerda, e eu quero que Diego passe a bola para Valdano, mas não passa. Eu pensava: ‘Esse filho da puta não vai tocar’, e continuava com a bola.”

“Falam de uma velocidade reluzente no segundo gol, e não é assim”, esclarece Signorini, o preparador físico de Ma­radona. “Diego demorou onze segundos em 52 metros, uma marca atlética péssima. Se pusermos em uma mesma linha os cinco ingleses de quem ele se esquivou e os fizermos correr cinquenta metros, Diego chega em último. Mas, no futebol, a velocidade é freio, astúcia, giro, não é velocidade atlética”.

“Diego não pensava, era instinto, rapidez mental na velocidade da luz, um pensamento de raio”

— Fernando Signorini

Já com Beardsley, Reid e Butcher no espelho retrovisor da jogada, falta a Maradona a trincheira final antes de se infil­trar na área: Fenwick é o último guardião do império. Embora só vejamos uma gigantesca obra individual, Maradona também se apoia no jogo coletivo para construir sua jogada: oferece indícios de que vai dar o passe a Burruchaga e busca um espaço para habilitar Valdano. Usa-os como isca. Os ingleses se abrem como as águas do mar Vermelho porque Maradona, quando não os evita com a bola, os engana com o movimento do corpo. Seus dribles são reais e virtuais. Víctor Hugo Morales, em sua narração para a Rádio Argentina, também cai no jogo de Maradona: “E escapa da cobertura e vai tocar para Burruchaga… Sempre Maradona!”.

“Acompanhei Maradona por quase todo o lance, desde que ele dá meia-volta entre dois ingleses”, lembra Burruchaga. “Éramos três: eu na direita, ele no centro e Valdano pela es­querda. Eu pensava que ele ia me passar a bola. Quando aparece o último zagueiro, Fenwick, Diego faz a finta, e o inglês quer se antecipar ao passe. Eu acreditava que nesse momento me passaria a bola.”

“Burruchaga e Valdano me ajudaram muito, me acom­panharam em toda a jogada, então eu fintava e seguia”, disse Maradona à revista El Gráfico em 1987. “Quem me marcava (Reid) ficou para trás, encarei o grandão (Butcher), passei por ele, e ganhei velocidade. Vi que Burruchaga e Valdano vinham ao meu lado, mas Fenwick não me largava.”

“Quando combato Maradona, eu estava na entrada da grande área”, rememora Fenwick por e-mail. “Vários de meus companheiros já haviam tentado detê-lo. Era para eu ter feito a falta, mas não fiz porque o tempo todo pensava que poderia ser penalizado de novo. Tinha recebido cartão amarelo no primeiro tempo, e isso me condicionou durante o resto da partida.”

“Eu era como o travelling da televisão, acompanhando a jogada”, disse Valdano ao site da FIFA, em 2007. “Marado­na contaria depois que esteve buscando um espaço para me passar a bola em minha melhor posição. Ou seja, ele fez o que fez e, não bastasse, teve tempo de olhar ao seu redor, o que me pareceu um insulto à profissão. Se ele tivesse feito o passe, eu teria marcado o gol com muita facilidade, mas não teria sido o melhor da história das Copas.”

“Quando encaro Fenwick, Valdano começou a me aju­dar”, conta Maradona em sua biografia. “Se Fenwick viesse para cima, eu passava para Valdano, e ele ficava sozinho con­tra Shilton. Mas Fenwick não vinha. Então o encarei, driblei para dentro e fui por fora, para a direita. Fenwick me deu um carrinho terrível.”

“A partida contra a Argentina foi um pesadelo”, diz Fenwick em sua biografia. “Ainda posso ver Maradona correndo em minha direção, nesse gol infernal. Maradona deveria ter sido parado muito antes de chegar à área. Antes de mim, houve quatro tentativas de detê-lo, e isso faz você se perguntar: foram suficientemente bons? Depois era eu contra ele, na última linha da defesa, lutando para tomar uma decisão. Maradona passou por mim e marcou o gol que recordaremos pelo resto de nossas vidas. Deveria tê-lo derrubado. Foi um erro, e o lamento. Depois da Copa, recebi muitas críticas da imprensa. Minha carreira internacional retrocedeu.”

“Quando Diego começou a driblar”, diz Batista, “deixei de ver parte da jogada. Nossa função como meio-campistas, enquanto os atacantes avançavam, era de organizar o time, e então você às vezes perdia o que acontecia no ataque. Vi o gol de camarote, mas perdi metade da jogada organizando a equipe.”

“Xinguei Diego na jogada porque ele ia avançando e eu via que, se perdesse a bola, os ingleses viriam no contra-ataque”, disse Batista ao Olé em 2001. “Só recentemente pude apreciar o gol quando vi pela TV.”

A bola, depois de ter atravessado o oceano, chega à margem. Beardsley, Reid, Butcher e Fenwick foram driblados. Hodge e o próprio Reid, que o perseguiam, o abandonam. Os alarmes ingleses soam: Butcher se refaz como o ciborgue de O Exterminador do Futuro e alcança Maradona pela direita. O goleiro Shilton sai para obstruí-lo, e Stevens corre da esquerda para cobrir o gol. Na tribuna de imprensa, Víctor Hugo grita “Gênio! Gênio! Gênio! Ta, ta, ta, ta!”, enquanto sobra a Maradona o mais fácil e também o mais determinante, uma decisão que o acompanhará por toda a vida: chutar a gol ou driblar o goleiro. Será que pensa na bronca que, em 1980, seu irmão mais novo, Hugo, apelidado El Turco, deu, quando, numa jogada similar contra a Inglaterra, mas em Londres, Diego finalizou na saída do goleiro Clemence, e o irmão o repreendeu porque, para ele, Diego deveria tê-lo driblado?

“Quando Diego engata e se livra do goleiro, disse para mim mesmo: ‘Meu Deus’”, lembra Brown.

“Quando Shilton saiu, pensei que poderia fazer algo”, explica Hodge em seu livro, “mas Diego foi pelo lado mais curto, algo que não era fácil, especialmente porque Butcher se jogou so­bre ele. Eu estava na entrada da área e já não poderia alcançá-lo. Só podia rezar para que houvesse um erro, mas Maradona não o cometeu, e isso tendo corrido cinquenta metros com a bola.”

“Quando saí para diminuir seu espaço”, lembra Shilton em sua biografia, “Maradona conduzia a bola e Butcher fungava em seu cangote. Noventa e nove por cento dos jogadores que estão nessa situação optariam por arrematar no gol. Eu esperava isso e estava pronto, mas Maradona chutou assim que Butcher lhe fazia falta. Me atirei, mas uma fração de segundo atrasado. Estive perto de tocar a bola, mas não consegui, e aconteceu o gol. O estádio explodiu.”

“Driblei Shilton e vi que Butcher vinha fechando”, disse Maradona em 1987, no primeiro aniversário da partida. “Pen­sei em jogá-la no meio para meus companheiros, mas bati na bola com a lateral do pé esquerdo para assegurar. Aí senti que o grandão (Butcher) me deu uma entrada violenta, mas não me machucou.”

“No final, Diego não passou a bola para ninguém”, afirma Giusti, “e quando dribla o goleiro, a bola corre um pouco demais, ou eu achava ter corrido um pouco demais, mas não. Meteu na rede, louco… meteu na rede, fez o gol! Eu não podia acreditar.”

A bola sai zunindo do pé de Maradona e cruza a linha. Não é um gol, é uma alquimia do futebol, e é — também — como se um relâmpago de eternidade caísse sobre o Azteca. O tempo se acelera e, ao mesmo tempo, se detém: se transforma em mármore, se sela em bronze, se grava na memória de milhões de pessoas ao redor do mundo, e esse instante começa a ser, para sempre, um instante eterno.

“Em vez de ir abraçar Maradona, fui buscar a bola dentro do gol para sentir que fazia algo útil”

— Jorge Valdano

“Para mim, é como esses programas de televisão que congelam uma imagem”, escreve Reid em seu livro. “Vejo em câmera lenta que Maradona escapa dos zagueiros. Pensei que Fen (Fenwick) teve má sorte; é possível dizer que Butch (But­cher) poderia ter feito alguma coisa; que Shilts (Shilton) talvez tenha se atirado um instante antes. Mas, depois de dizer tudo isso, às vezes você só tem de levantar a mão e admitir que foi brilhante, e foi isso o que aconteceu.”

“O gol foi incrível, mas duplamente incrível foi onde o marcou”, diz Burruchaga. “Não só por ter escapado dos za­gueiros, mas, sim, pela forma como conduzia a bola controlada. Nesse gramado era impossível! O campo era deplorável, a bola corria, e o Gordo a levava no pé como só ele era capaz. Nessa mesma baliza, na semana seguinte, fiz o gol contra a Alemanha na final, e só toquei três vezes na bola em quarenta metros porque era impossível de controlar. Ele a tocou 10 mil vezes, e não a deixou escapar.”

“Sabíamos que esse gol sairia, por isso não me surpre­endeu tanto”, diz Enrique. “Nos treinos no México, eu jogava no time dos suplentes, e era muito difícil roubar-lhe a bola. Ele parecia cair, mas se arrastava e seguia.”

“Teria me surpreendido se Tata Brown o tivesse feito, mas não Diego”, diz Olarticoechea. “Você sabe a quantidade de gols assim que o vi marcar? O que acontece é que o marcou em um momento histórico e no lugar certo, na Copa do Mundo, e contra a Inglaterra.”

Em sua cabine de transmissão ao ar livre, Víctor Hugo se perde, fica fora de si: “Goool! Goool! Quero chorar! Santo Deus! Viva o futebol! Golaço! Diegol! Maradona! É para chorar, me perdoem.”

No campo, à comemoração de Maradona, junto ao es­canteio, se somam dois jogadores, Burruchaga e Batista. Não deve ser fácil estar à altura do acontecimento: um gol extraor­dinário merece uma felicidade compatível. O que se pode dizer a Maradona em um momento como esse?

“Diego vai comemorar o gol num canto e eu o sigo”, diz Burruchaga. “Eu o chamei de tudo, o xinguei de cima a baixo: ‘Que baita gol você fez, seu filho da puta’”.

“Eu estava proibido de comemorar os gols com os ata­cantes”, recorda Batista, “mas, no segundo (gol contra a Inglaterra), me esqueci das precauções e fui abraçar Diego. Não podia acreditar no que tinha feito, não entendia nada. Fui pensando no que lhe diria. Não ia dizer ‘que lingo gol, Diego, parabéns’, então o xinguei de tudo, que era um marciano. Depois ficamos um tempinho ali no ataque para que os da defesa se acomodassem. Fiz o mesmo na final, no gol de Burruchaga, quando ele diz que viu Jesus.”

Como Maradona comemora junto à bandeira do escan­teio, dois auxiliares da seleção correm para buscá-lo por trás dos painéis de publicidade. Eles são Salvatore Carmando, o massagista napolitano de Maradona, e Rubén Benros, o roupeiro.

“Nós assistíamos à partida detrás do gol, porque ali ficava o vestiário”, conta Benros. “Com o gol, quase desmaio. Dei uma cambalhota, me joguei de cabeça. Apareço em meia dúzia de vídeos fazendo tudo isso.”

Em uma imagem difícil de detectar, exibida por apenas um segundo pela TV, Carmando chega até Maradona. O painel publicitário o separa, mas o italiano inclina seu torso e o beija na testa. Deveria ser um pôster atemporal, o beijo no ilusio­nista, mas nenhum fotógrafo captura o momento. Maradona inicia o regresso ao círculo central, dá quatro passos e outro companheiro chega.

“Depois de pegar a bola dentro do gol”, diz Valdano em Esto (también) es fútbol de selección, “fui aonde Diego festejava e lhe entreguei a bola, como se ele tivesse um sentido patrimo­nial sobre ela.”

“Antes da partida”, lembra Robson, o treinador inglês, em sua biografia, “havia dito a meus jogadores que Maradona tinha a capacidade de mudar a partida em cinco minutos. Que profético acabou sendo.”

“‘Que grande gol’, comentei com os outros suplentes ingleses, ao meu lado”, escreve Barnes em seu livro. “Sabia que esse gol provavelmente nos eliminaria do Mundial, mas foi tão fantástico que me senti como se aplaudisse. Do banco víamos Terry (Butcher) tentar alcançá-lo e gritávamos para ele: ‘Até o fim, Terry, até o fim’, mas não o alcançou. Vê-lo foi emocionante e angustiante ao mesmo tempo. Se o gol tivesse sido feito por um de meus companheiros, jogadores que eu considerava do meu nível, teria sentido inveja, mas Maradona era de outro planeta. Para mim, o importante foi compartilhar um campo com ele, não com a Argentina.”

“Não foi falta de disciplina de nossa defesa, não houve erros”, diz Robson em seu livro, “foi unicamente o gênio de um jogador que driblou a metade de nosso time. Maradona preci­sava ter sido advertido pela mão do primeiro gol, mas, em vez disso, cresceu no jogo.”

“Quando disparou na jogada, paralisamos no banco, sem piscar”, lembra Almirón, um dos reservas argentinos. “Já dizíamos ‘golaço’ antes que Diego finalizasse a jogada. E quando fez o gol, entramos correndo no campo como loucos.”

“É a grande lembrança que guardo desse dia”, diz Zela­da, o terceiro goleiro argentino. “Quando Diego inicia a jogada, no banco já passamos a nos olhar e dizer: ‘Não pode ser, não pode ser’. Eu levei as mãos à cabeça antes da conclusão do gol, imagine o que aconteceu depois: ficamos como se tivéssemos visto um OVNI.”

“Eu desmaiei durante uns segundos”, recorda Carlos Pachamé, o auxiliar de Bilardo, por telefone, de sua casa em La Plata. “Estava sentado em uma cadeira individual, ao lado do banco de suplentes, com uns papéis em que anotava questões táticas que iam ocorrendo na partida. O gol foi uma coisa incrí­vel, saí correndo loucamente e, quando fui me sentar de novo, desvaneci, minha vista se nublou e caí para a frente. Foram uns segundos: em seguida, me levantei.”

“Fiquei maluco, abracei o médico, Madero, e todos os que estavam no banco, mas me acalmei em seguida”, revelou Bilardo à revista El Gráfico daquela semana.

“Cabe ao técnico passar tranquilidade aos seus jogadores. Caso contrário, seria uma anarquia. Mas foi o segundo gol que mais gritei em minha vida. O outro foi um de Juan Ramón Verón pelo Estudiantes, quando era jogador, em 1968, contra o Palmeiras.”

A comemoração de Bilardo no segundo gol é outro exem­plo da queda de braço entre o que aconteceu e o que acreditamos ter acontecido: como geramos lembranças inexistentes que, no fim, são tão reais quanto as autênticas. Diferente do que disse no dia do jogo — ter ficado maluco — , o treinador começaria a sustentar, com o passar do tempo, que não comemorou a obra de Maradona.

“Não sou de gritar gols”, respondeu-me Bilardo, sem muita precisão, quando lhe perguntei a respeito de sua reação diante da obra de Maradona. “Não os comemoro, trato de or­ganizar a equipe.”

“Não festejei. Disse ‘gol’ e olhei para a defesa para ver como estávamos postados. Senão te pegam mal posicionados sempre”, justificou o técnico a Alejandro Fantino em Animales Sueltos, da América TV, em 2013, na exacerbação de seu perso­nagem como treinador hiperdetalhista.

Nas arquibancadas se desata a comemoração, mas a grande jogada da história não produz avalanches porque, no Azteca, todos os torcedores estão sentados, não há setores para ver a partida de pé. Seja como for, como se grita um gol que continuará sendo gritado trinta anos depois?

“Estava nos camarotes”, contou Don Diego, o pai de Diego, ao Olé em 2004. “Durante a jogada dizia ‘O que acontece, o que ele está esperando para chutar?’. Eu via que seria derru­bado e me desesperava.”

“Quando Diego iniciou a jogada, meu irmão e eu nos cutucamos na perna dizendo ‘olha, olha’”, diz César Ahumada, torcedor mexicano. “O Azteca já era uma festa. Vendiam cer­veja, havia muitas garotas bonitas, muitas coisas acontecendo, e, no entanto, olhávamos a partida abobados. Quando driblou o segundo, dissemos: ‘Olé’, e quando Maradona cai e marca o gol, já estávamos nos abraçando com todos os torcedores argentinos. Disse ao meu irmão: ‘Acabamos de ver o gol da história das Copas’. Os argentinos choravam ao nosso redor. O monstro do futebol havia feito história diante dos nossos olhos. Se já era tudo lindo, isso foi uma loucura, um delírio.”

“Tenho a imagem de Maradona que sai para comemorar para a direita, e nesse momento me abraço com um monte de gente que não voltaria a ver em minha vida”, relembra Cabado, um dos argentinos.

“Eu não vi o gol. O tempo todo havia briga com os ingle­ses”, diz o torcedor do Chacarita.

“Em todo o estádio, o comentário nos corredores era o da maior consagração de um futebolista em uma partida”, diz Menotti. “Não deve haver recital de um músico, discurso de um político, que tenha passado tantas vezes na televisão do mundo. Parecia que Diego havia caminhado pela calle Florida. É muito difícil que um drible não inclua o contato. Pode ocorrer no primeiro drible, mas, no segundo, vêm dois ou três e te dão um encontrão. Aqui Diego passou por todos a meio metro, com muito esmero.”

Na tribuna de imprensa, o relato de Byron Butler, narra­dor histórico da rádio BBC, não menciona o termo trivial, “gol”, quando a bola ultrapassa a linha. Sua nobreza é das menos ha­bituais no esporte, a de reconhecer a beleza alheia em meio ao próprio desastre: “Maradona gira como um pião e se desvencilha do problema”, começa Butler, quando o argentino dribla Be­ardsley e Reid na metade do campo.

“A pequena máquina passa por Butcher e o dribla, segue adiante e penetra na área, e por isso Maradona é o melhor jogador do mundo, isto é Inglaterra 0 x 2 Argentina. Inglaterra 0 x 2 Maradona.”

O trecho acima integra o livro “O Jogo: Argentina × Inglaterra · 1986”, do argentino Andrés Burgo, traduzido e publicado no Brasil pela Dolores Editora, e foi concedido gentilmente para publicação no Futebol Café.

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