O irmão de Zico, alvo milico

Fernando, ex-jogador e irmão do Galinho, foi perseguido pelas ditaduras de Brasil e Portugal, o que o forçou a largar o futebol

Bruno Rodrigues
Futebol Café
6 min readApr 2, 2018

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Fernando Antunes Coimbra, o Nando, marcado de perto no campo e também fora dele. Foto de quando atuou em Portugal, no Gil Vicente (Crédito: Bruna Rebouças Clara, montagem sobre foto de Fernando Antunes Coimbra)

Esta reportagem foi publicada na edição #22 da Líbero, de outubro de 2017. O Futebol Café fez a tradução do texto para o português, compartilhado neste espaço com o aval da revista espanhola, que gentilmente cedeu o conteúdo ao blog

Por Bruno Rodrigues e Alexandre Guariglia

Antunes Coimbra. Não fosse por Zico, Antunes e Edu, o sobrenome teria ganhado notoriedade com Fernando. Ou pelo menos deveria. Irmão do histórico ídolo do Flamengo oitentista, caçado de costume pelos rivais em campo, Nando sentiu na própria pele os anos de chumbo do regime militar brasileiro e suas mãos sobre o futebol do país. Até quando atravessou o Atlântico para jogar pelo Belenenses, de Portugal, a presença da ditadura parecia tão próxima que era como se a tivesse levado na bagagem.

No ano do golpe, 1964, Nando dividia seu tempo entre a Faculdade Nacional de Filosofia e os treinos na base do Fluminense. Sua irmã Zezé e ele prestaram e foram aprovados em um concurso para o Plano Nacional de Alfabetização idealizado pelo professor Paulo Freire. A ideia do PNA era extinguir o analfabetismo no país e iniciou seu projeto pelo Rio de Janeiro, ainda no governo de João Goulart. Entretanto, a experiência de Fernando no programa foi curta, marcando o que foi a primeira passagem da ditadura por sua vida.

“Eu fui professor do Plano Nacional de Alfabetização e o primeiro ato da ‘maldita’ no Rio foi acabar com a PNA e nos considerar subversivos. Não dei muita importância, pois naquele momento já estava envolvido com o futebol. Após me tornar profissional, jogando no Espírito Santo por um time da capital que nem existe mais (o Santos FC), sofri a primeira perseguição quando o treinador foi substituído por um oficial do exército e este, na primeira semana, me afastou do elenco. Por certo pediu e recebeu informações do grupo ao SNI e assim ficou sabendo que fui do PNA. Eles eram muito organizados. O presidente do clube me desejou sucesso e não quis me dizer o real motivo da minha saída. Pediu que eu entendesse o momento que o país vivia. Aí entendi o recado na hora”, confessa Nando.

Após a profissionalização pelo Santos do Espírito Santo, Nando jogou no América — clube em que seu irmão Edu é ídolo — e no Madureira, até que o Ceará se interessou por seu futebol e o contratou, em 1968, já com Costa e Silva no poder da nação. As boas atuações na equipe cearense chamaram a atenção dos portugueses do Belenenses e o jogador, ainda muito jovem, partiu para terras lusitanas tentar a sorte. Mas só tentou, pois a perseguição, somada às diversas ameaças, colocaram ponto final em sua breve carreira de jogador de futebol. O início de Zico no Flamengo também pesou para o retorno.

Carteirinha de registro de atleta do América, de 1967 (Crédito: Fernando Antunes Coimbra)

“Em um determinado dia lá em Portugal, no hotel que eu morava, recebi a visita de dois cretinos da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), que era a polícia política portuguesa, comandada pelo Salazar — de triste memória, aliás. Estavam bem informados a meu respeito. Tremi na base porque tinha apenas 22 anos e numa época que as comunicações praticamente só funcionavam através de cartas. O telefone era por cabo submarino e era difícil uma ligação pra minha casa. Me ameaçaram até com a ida para a guerra nas Áfricas Portuguesas por ser filho de português. Quem me salvou foi a esposa de um empresário do clube que tratava do meu contrato. Ela praticamente me colocou no avião. Saí fugido, cheguei no Rio e não contei a verdade. Disse apenas que não tinha gostado de Portugal. Precisava proteger meus irmãos, que faziam muito sucesso. Sabíamos que o Zico seria um dos melhores do mundo.”

Na volta ao Brasil, Nando foi preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e encontrou na prisão da Rua Barão de Mesquita sua prima Cecília. Na época, Cecília Coimbra era militante do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) e, claro, foi considerada subversiva pelos militares, assim como seu marido, José Novaes. O casal ficou preso por cerca de três meses e, de acordo com Fernando, foi “barbaramente torturado”. Hoje, ela colabora com o grupo (que também já presidiu) Tortura Nunca Mais, que luta pelo resgate da memória do período da ditadura. Nando detalha o que viveu naqueles dias de cárcere.

“No dia 30 de agosto de 1970, fui preso com quase todos que estavam na casa da mãe da Cecília. Ficamos num corredor cercado de celas que mais pareciam jaulas e numa delas estava o Novaes. Fui interrogado algumas vezes e sabiam tudo de mim, até de um táxi que tinha. Estudantes, professores e sindicalistas foram os escolhidos para eles justificarem a tomada do poder. Ridículo. Passei pelo menos 48 horas com a cara na parede e as mãos na cabeça. Quando o braço descia de cansaço os soldados vinham com a baioneta e nos cutucavam, para erguermos o braço de novo”, conta o ex-jogador.

Reportagem sobre Nando publicada na Revista Líbero, em 2017. À esquerda, “Bola de Chumbo”, trabalho acadêmico de conclusão de curso da PUC-SP, de onde a entrevista de Nando foi extraída (Crédito: Bruno Rodrigues)

Fernando notava uma certa curiosidade por parte dos militares sobre ele, muito provavelmente pelo fato de que seus irmãos Antunes e Edu eram famosos. Inclusive, sua mãe e os dois irmãos passaram quatro dias do lado de fora do quartel esperando por Fernando. “Quem passava por lá percebia que alguma coisa tinha acontecido com os Antunes”.

Mesmo depois do episódio na prisão, Nando insistiu no futebol. Contudo, uma passagem apagada pelo Gil Vicente, de Portugal, fez com que ele desistisse da carreira futebolística. Na época, Zico dava seus primeiros passos como jogador no Flamengo e Edu era cotado para defender a Seleção Brasileira na Copa de 1970, no México. Segundo Nando, o que só não se concretizou em razão das diferenças ideológicas entre a família e os homens do poder.

“O João Saldanha, uma vez perguntado por que não convocava o Edu, afirmou que havia restrições à família Antunes por parte da ditadura. O Edu, em 1969, foi o melhor jogador do Brasil e também o maior artilheiro brasileiro. Eles tinham prazer em prejudicar gratuitamente a qualquer um. Em 1964, o Brasil era pródigo nas artes, nos esportes, na música, na arquitetura e urbanismo, etc. Sobravam talentos e aí veio a escuridão. Com ela, a censura que começou a castrar de forma violenta o expansionismo destes talentos”, afirma.

Tunico, Zico, Edu, Antunes e Nando: a família futeboleira Antunes Coimbra (Crédito: Fernando Antunes Coimbra)

Nando lamentou também que poucos atletas profissionais tenham se posicionado contra o regime durante os anos em que vigorou a ditadura militar. Ele cita Reinaldo e a Democracia Corintiana em geral como pontos fora da curva no combate à repressão, e tem a explicação para a reação ter sido tardia. “Na minha época era impensável se posicionar, pois com o AI-5 (Ato Institucional número 5) tudo ficou perigoso. Quando o regime já estava desgastado e desmoralizado, aí sim foi possível”.

Em 2003, Fernando Antunes Coimbra entrou com um processo na comissão de anistia do Ministério da Justiça. Sete anos depois, foi considerado pelo órgão um perseguido político dos ditadores se tornando, portanto, o primeiro jogador de futebol a ser anistiado na história do Brasil, o que quatro décadas depois de tortura, pressão psicológica e frustrações, foi motivo de orgulho não só para Nando, mas também para todos aqueles que carregam e carregarão o famoso sobrenome. O famoso Antunes Coimbra.

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