Rival do Barcelona na Champions, Ferencváros já teve seu Lionel Messi

Imre Schlosser foi o primeiro grande goleador húngaro e alcançou média incrível de quase dois gols por jogo pelo clube

Bruno Rodrigues
Futebol Café
7 min readDec 1, 2020

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O atacante com a camisa da seleção da Hungria, no início do século passado (Crédito: IFFHS)

Os número individuais de Lionel Messi são simplesmente impressionantes e isso não é segredo para ninguém. Com a camisa do Barcelona, o argentino já marcou 641 gols em 743 partidas desde 2003, quando estreou com a camisa do clube catalão em amistoso no Porto — média de 0,86 gol por jogo. Somando os que marcou pela Argentina, são 712 em toda a carreira.

Sete vezes artilheiro do Campeonato Espanhol, foi chuteira de ouro da Europa em seis oportunidades, além de eleito o melhor jogador do mundo também seis vezes, o que faz dele o jogador mais premiado entre os homens.

Adversário do Barça nesta quarta-feira (2), no penúltimo jogo da fase de grupos da Champions League, o Ferencváros, da Hungria, também pode se gabar e dizer que um dia já teve, há mais de 100 anos, seu próprio Messi.

Imre Schlosser, nascido em 1889 na cidade de Budapeste, não parecia em nada fisicamente com o argentino do Barcelona. De rosto arredondado, estava mais para um Wayne Rooney de sua época. A semelhança com Messi reside apenas na facilidade com que marcava gols. Muitos gols.

“Com sua grande testa e seu não muito convincente bigode, ele não parece um atleta, mas permanece estatisticamente como o maior artilheiro na história da Hungria”, escreveu Jonathan Wilson em The Names Heard Long Ago, livro sobre a influência do futebol húngaro no jogo moderno, publicado pelo autor de Pirâmide Invertida em 2019.

“The Names Heard Long Ago”, de Jonathan Wilson (Crédito: Futebol Café)

Schlosser começou a jogar futebol nos grunds, os terrenos baldios que sobreviviam ao processo de rápido crescimento urbano de Budapeste entre o fim do século 19 e o início do século 20. Eram espaços como os potreros, na Argentina, ou como a várzea, no Brasil, onde crianças e jovens se reuniam para bater bola e desenvolviam, naturalmente, técnicas e movimentos capazes de controlar o esférico e dar direção ao passe em superfícies irregulares.

O atacante iniciou a carreira de fato em um clube chamado Aston Villa e depois se transferiu para o Remény, que em húngaro significa “esperança”. Aos 17 anos, assinou contrato com o Ferencváros, um dos dois principais clubes do país ao lado do MTK Budapest.

A princípio, Imre Schlosser chegou para atuar pela equipe B do Ferencváros. Porém, a lesão de um jogador do time principal deu a ele a oportunidade de estrear pelos profissionais. Rapidamente demonstrou sua capacidade de finalização e, com um aproveitamento impressionante nos arremates, ajudou o clube a iniciar um período de domínio absoluto no futebol nacional.

Foram incríveis 215 gols em 129 jogos entre 1906 e 1916 — média de 1,6 gol por jogo. Seu primeiro título com a equipe verde e branca veio na temporada 1906/1907. Após a conquista do MTK na temporada seguinte, Schlosser liderou o Ferencváros a uma sequência de cinco títulos seguidos de 1909 a 1913. No período em que defendeu o clube, foi seis vezes artilheiro da liga húngara e quatro vezes artilheiro da Europa.

É preciso ressaltar que aquele era um outro futebol. Antes da mudança na lei do impedimento, em 1925, o esquema padrão era o 2–3–5, totalmente voltado para o ataque em um jogo mais direto que buscava os pontas. Era o modelo inglês do kick and rush.

Foi um escocês, John Tait Robertson, o responsável por levar à Europa central a cultura do jogo curto, de passe, aprimorada pelo inglês Jimmy Hogan quando este foi técnico do MTK, de Budapeste. Juntos, eles serviram de referência para jogadores e técnicos mais jovens e transformaram o futebol húngaro (e também o futebol austríaco, em menor escala) na referência tática e estética do futebol europeu no período entre guerras. Sua influência chegaria inclusive ao Brasil, onde Dori Kürschner, que foi atleta de Robertson, implementou o WM (3–2–2–3) no Flamengo.

O próprio Imre Schlosser levaria essas ideias à Suécia, onde trabalhou como treinador, influenciando o país como tantos outros húngaros fizeram pelo mundo naquele dado momento da história. Antes, porém, Schlosser ainda seguiria marcando muitos gols.

O time campeão de 1909. Sentado, Schlosser é o segundo da dir. para esq. (Crédito: Site oficial do Ferencváros)

Apesar de sempre ter sido retratado como uma figura humilde, ele era uma estrela entre os fãs de futebol da Hungria, ajudado pelo fato de que a imprensa o admirava. Com as pernas arqueadas igual a Garrincha, o atleta era um dos personagens favoritos de cartunistas, que o desenhavam como se tivesse pernas de borracha.

Ciente da importância que tinha para o Ferencváros, quis aproveitar essa condição de ídolo para pedir aos dirigentes do clube ingressos adicionais para seus familiares. Contudo, o pedido foi negado, o que irritou Schlosser.

Em uma discussão com um cartola, o atacante húngaro foi chamado de “cachorrinho”. Como forma de se vingar do Ferencváros pelo que considerou um desrespeito após vários anos de contribuição à equipe, ele decidiu tomar uma atitude ousada: assinar com o rival MTK.

“Secretamente, derramei várias lágrimas por ter abandonado as cores verde e branca. Eu ainda os admiro e isso permanecerá assim. É fácil de entender porque eu realmente conheci o verdadeiro espírito do clube e minha carreira no futebol começou lá. Eu sempre senti uma alegria imensa quando vesti a camisa verde e branca listrada”, disse Schlosser anos depois, de acordo com registro presente no livro de Jonathan Wilson.

Segundo o autor, a negociação do craque, que de certa forma lembra o litígio de Lionel Messi com o Barcelona antes do início desta temporada, chegou a ser discutida no parlamento húngaro.

Não foi a primeira vez, porém, que Imre Schlosser ganhou manchetes pelo que fez fora de campo.

Na final da Copa da Hungria de 1913, vencida pelo Ferencváros diante do BAK, o atacante recebeu um golpe de um adversário chamado Ludwig. Revoltado, ele deu uma entrada dura no meio-campista rival Kalmán Szury, escapando por pouco de uma expulsão. O clube alviverde venceu por 2 a 1 e ficou com o título, mas a confusão seguiu mesmo depois do fim da partida.

“O Ferencváros venceu por 2 a 1, mas no gramado, após o apito final, a esposa de Schlosser insultou a noiva do goleiro do BAK, Ferenc György, que então foi buscar Schlosser nos vestiários. Schlosser respondeu agressivamente, mas levou um soco no queixo, pouco antes de seus companheiros retirarem György do local”, conta Jonathan Wilson.

A notícia chegou a Londres. O “Daily Mirror” publicou uma charge na qual húngaros de outros esportes se agridem com tacos de sinuca e raquetes de tênis. Um dos envolvidos na briga, com um taco de golfe em mãos, tenta se desvencilhar de um rival que morde sua perna.

Coluna social à parte, Imre Schlosser foi bem no MTK e seu plano de vingar o Ferencváros funcionou. Ao lado de Alfréd Schaffer, outro grande atacante da época, o Messi magiar anotou 36 gols em 18 partidas e levou o clube ao título da liga. Com a camisa do MTK, foram seis títulos nacionais consecutivos entre 1917 e 1922.

De acordo com os números pesquisados por Jonathan Wilson, Schlosser deixou o clube com a marca de 135 gols em 115 jogos —média de 1,17.

“Ter Schlosser, Schaffer e o hábil Kálmán Konrad na mesma linha ofensiva, municiados por [György] Orth e [József] Braun, era absurdo. Na campanha do título em 1917/1918, o MTK desperdiçou um único ponto nos 22 jogos da liga, anotando 147 gols e levando apenas dez”, escreveu o autor em The Names Heard Long Ago.

Depois do MTK, o jogador iniciou um breve período como técnico, com passagens pelo MAK, da Hungria, além de trabalhos no futebol sueco (Norrköping) e polonês (Wisla Cracow). Na temporada 1926/1927, a primeira do futebol profissional no país natal, retornou como jogador ao Ferencváros, seu clube do coração, e conquistou a dobradinha com os títulos da liga e da copa. Em 1928, encerrou a carreira no FC Budapest.

Seu recorde total é de 415 gols em 318 jogos no futebol húngaro. Média superior a um gol por jogo na carreira (1,30).

Primeiro grande goleador da Hungria, marcou também 59 gols em 68 jogos pela seleção, quatro deles nos Jogos Olímpicos de 1912, em Estocolmo. Nas contas do atacante, porém, ele teria representado a equipe nacional em 75 ocasiões. O número está registrado em sua lápide no cemitério de Farkasréti, construída por dois fãs do jogador, que não cobraram pelo serviço quando o ídolo morreu, em julho de 1959, aos 69 anos de idade.

Quatro anos antes de sua morte, na comemoração do 100º enfrentamento entre as seleções de Hungria e Áustria, Schlosser entrou em campo com o uniforme dos magiares e, diante de 104.000 torcedores, com as mesmas pernas arqueadas com as quais encantou o país no início do século, deu o pontapé inicial no Népstadion e se despediu para a eternidade.

Imre Schlosser, no centro, segura uma coroa de flores e uma bola. Segundo da direita para a esquerda é Ferenc Puskás, capitão da Hungria na despedida de Schlosser, em 1955 (Crédito: Museu dos Esportes da Hungria)

O estádio de Budapeste foi demolido recentemente para dar lugar ao renovado Ferenc Puskás. Quase uma metáfora da passagem de bastão, do primeiro grande goleador ao maior futebolista da Hungria. Ambos eternos.

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