Griezmann — O francês mais uruguaio que existe

Ligação do jogador com o país sul-americano e a adoração por sua cultura são abordadas em crônica do livro ‘Adeus, Copa!’

Bruno Rodrigues
Futebol Café
6 min readNov 21, 2018

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Antoine Griezmann, por Igor Bertolino do De Classe

Este texto faz parte da seleção de crônicas do livro “Adeus, Copa!”, da Editora Primeiro Lugar. A obra reúne textos de personagens que fizeram história, por bem ou por mal, na Copa do Mundo da Rússia. A reprodução do texto abaixo conta com o aval da editora, que liberou a crônica para publicação no Futebol Café

Por Bruno Rodrigues

No momento em que a bola passou pela mão escorregadia de Fernando Muslera, a multidão que antes agitava a esplanada do prédio da prefeitura simplesmente ficou muda.

Os uruguaios que assistiam ao jogo no telão pareciam não saber muito bem como reagir ao gol de Griezmann, que levantou os braços ao céu em um pedido de desculpas. Lamentou, nas quartas de final de uma Copa do Mundo, por fazer seu povo orgulhoso, mas seu outro povo triste.

Antoine Griezmann nasceu em Mâcon, na França, mas poderia muito bem ter nascido em Canelones ou Maldonado. Simpatiza com o Peñarol, é fã de doce de leite e toma o amargo mate como um uruguaio mais. Influência direta do convívio com os amigos charrúas Diego Godín e José Giménez, companheiros de Atlético de Madrid.

Foi um uruguaio, inclusive, que permitiu a ele subir alguns degraus importantes rumo ao primeiro escalão do futebol mundial. Quando atuava na base da Real Sociedad, no País Basco, o técnico da equipe principal Martín Lasarte viu em Griezmann potencial para jogar entre os grandes na liga espanhola. Depois de ter sido negado nos clubes do próprio país, além da desconfiança dos dirigentes bascos, o atacante francês foi capaz de agarrar a chance de triunfar aos olhos da Europa. E triunfou.

Lasarte provavelmente não estava entre os fanáticos que se amontoavam em frente à prefeitura para assistir ao jogo contra a França. Mas certamente, no conforto de sua casa, lembrou do dia em que decidiu dar uma chance a um garoto que prometia o sucesso. E que levou, ainda que se desculpasse, a decepção a pouco mais de três milhões de pessoas que vivem ao sul das Américas.

“La concha de tu madre, pibe”, deve ter dito Lasarte à mulher, depois de arremessar uma almofada longe e assustar o cachorro, quando Muslera deixou passar o chute do atacante francês.

Se os mais velhos ainda buscavam alguma explicação para aquele 2 a 0, com os minutos correndo e a ilusão indo embora, a lágrima no rosto das crianças denunciava com clareza a reação de quem já tinha entendido tudo: o sonho terminava ali.

E por quê ele? Por que logo esse francês que bebe mate na cuia e brada “Uruguay nomá!” aos quatro ventos?, devem ter perguntado os pequeninos uruguaios e uruguaias que buscavam no abraço dos pais o consolo por estarem amadurecendo rápido demais com as duras derrotas do futebol.

Talvez por esses garotos e garotas, que jogam videogame e fazem gols com Griezmann, que querem ser Griezmann, ele tenha pedido desculpas diante do mundo, através das telas e lentes que registravam a classificação francesa.

França dá as caras na Rússia

A vitória sobre o Uruguai parece ter confirmado as intenções da França na Copa do Mundo. O desempenho até então, para usar uma palavra bem francesa, era deveras blasé até o momento. O próprio técnico Didier Deschamps pensava assim, como mostrou uma TV do país que produziu um documentário sobre o torneio no qual o comandante dá uma bronca, sem levantar o tom de voz, na morosidade de sua equipe no triunfo sobre a Austrália, na estreia da Copa.

O sentimento de que o time francês rendia abaixo das plenas faculdades técnicas era também a impressão sobre o futebol de Griezmann na Rússia. Começou a competição com gol de pênalti contra os australianos, em partida cuja figura principal foi a estreia do aclamado árbitro de vídeo em Copas.

Bandeira uruguaia tremula na esplanada da prefeitura de Montevidéu, minutos depois da França ter batido o Uruguai na Rússia (Crédito: Bruno Rodrigues)

O atacante, dono de um futebol que não se destaca pela discrição, era discreto o suficiente para levantar a dúvida nos analistas, ao final da fase de grupos, se o craque do Atlético de Madrid estava pronto para confirmar o protagonismo com o uniforme nacional.

No ciclo que antecedeu a Copa do Mundo, Antoine Griezmann viu a trave lhe negar a glória em um pênalti na final da Champions League, em Milão, quando o Real Madrid, justamente o Real Madrid, faturou mais uma taça orelhuda. Viu também as mãos do português Rui Patrício lhe negarem a festa diante dos seus patrícios na Eurocopa disputada em casa.

Um novo tropeço, dessa vez em um Mundial, poderia conferir a ele a imagem de eterno perdedor, apesar das tantas vitórias pessoais e coletivas televisionadas a cada fim de semana europeu e, bem maior que isso, a vitória de ter realizado o sonho de ser jogador de futebol.

Contra a Argentina, nas oitavas de final, foi novamente bom coadjuvante com mais um gol de pênalti em uma história na qual o protagonista, Kylian Mbappé, roubou simplesmente todos os holofotes com a trinca que eliminou a seleção de Lionel Messi, porque só de Messi era feita a Argentina.

Depois de eliminar aquele país que considera um pouco seu, o Uruguai, colocou a bola na cabeça de Umtiti para deixar a Bélgica pelo caminho na semi e avançar até a final em Moscou.

Enfim, a consagração

Na decisão, uma cobrança de falta para o meio da área croata encontrou novamente uma cabeça artilheira. A cabeça, porém, era de Mario Mandzukic, ex-companheiro de Griezmann no Atlético, que desviou contra a própria meta para desencadear a melhor exibição da França em todo o Mundial.

“Vamos!”, gritou Griezmann com o gol de Mandzukic, antes de marcar seu próprio no Estádio Lujniki. De pênalti, é claro, o primeiro em uma final de Mundial com o auxílio do VAR, para enterrar de vez o fantasma daquela decisão de Champions League, colocando seu nome na história. Além da taça dourada, levou para casa também o troféu de melhor da partida.

Convertido o pênalti, correu à linha de fundo para comemorar e fez o sinal de L na testa, uma brincadeira de um jogo de videogame, Fortnite, que basicamente consiste em matar os outros oponentes. Quando isso acontece, quem mata goza da vitória mandando um L, de “loser” (perdedor, em inglês), ao perdedor. E os perdedores, é óbvio, ficam mais do que putos da vida quando são chamados assim. Também pudera. Imagine, então, você ser o “loser” de uma Copa do Mundo.

Poderia ter sido o destino de Griezmann na Rússia, não tivesse ele próprio aparecido nos momentos decisivos, especialmente nas bolas paradas, mortas, para dar vida à França quando sua seleção mais precisou.

Na entrevista coletiva após o título mundial, recebeu de um jornalista do paisito a bandeira do Uruguai. “Me dê ela aqui”, disse Antoine Griezmann, e enrolou-a sobre o corpo, ostentando o emblema oriental até que a última pergunta fosse feita.

“Esta bandeira, levo para toda a vida”, completou o garoto de Mâcon, o francês mais uruguaio que existe.

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