Do pênalti de Panenka ao milagre da Grécia, livro conta a história da Euro
O Futebol Café entrevista o jornalista e escritor português Miguel Lourenço Pereira, autor de obra dedicada ao torneio de seleções
O português Miguel Lourenço Pereira lembra de ter abraçado uma porção de gregos nas arquibancadas do Dragão quando Traianos Dellas, no fim do primeiro tempo da prorrogação, anotou o gol que eliminaria a República Tcheca e colocaria a Grécia na final da Eurocopa de 2004.
Era um abraço em homenagem ao feito incrível dos helênicos, mas também a confirmação de que Portugal teria o adversário mais fácil na decisão europeia, em sua própria casa, diante de seus próprios torcedores. Enganaram-se o Miguel e tantos outros portugueses que, naquele 1º de julho, celebraram de antemão uma taça que, para eles, certamente ficaria em Lisboa, mas que acabou transportada para Atenas e para a eternidade.
São histórias como a do milagre grego que Miguel Pereira conta em Sueños de la Euro, livro publicado pelo braço literário da Revista Panenka (publicação leva esse nome, diga-se, em homenagem a um personagem icônico da Eurocopa) que recorda os mais de 60 anos de disputa da competição de seleções do velho continente. A obra tem prefácio do ex-treinador Vicente Del Bosque, campeão do torneio com a Espanha em 2012.
“A Eurocopa é um torneio que valoriza a união de um continente”, diz Miguel Lourenço Pereira, em entrevista ao Futebol Café.
“Sempre digo que a Euro 2000, junto com o Mundial de 1998, são as últimas duas competições grandes de seleções que representavam o futebol dos melhores que havia no mundo. Os torneios depois passaram a ser eventos da ideia coletiva, e não mais da celebração do individual, do futebol como arte.”
A edição de 2020 da Euro, que precisou ser adiada em razão do coronavírus e terá jogos espalhados por vários países, começa no próximo dia 11, em Roma, com o confronto entre Turquia e Itália.
Confira abaixo a entrevista completa com o autor de Sueños de la Euro.
Você é um autor que tem se dedicado a contar a história de grandes competições, como fez com a Champions League, mas também as histórias dentro desses contextos que são muito amplos. Por que contar a história da Eurocopa e quando iniciou esse projeto?
O livro tem muitos anos, provavelmente comecei a escrevê-lo inconscientemente à medida em que fui me apaixonando pelo futebol. Fiz Jornalismo porque sabia que queria escrever sobre futebol. Na adolescência eu já produzia fanzines. Essa paixão nasceu paralelamente a jogar bola, a ver o jogo. Esse livro é uma homenagem ao meu eu pequeno, ao meu eu criança. Como sabia que não tinha condições de ser futebolista, queria estar nas competições de outra forma. Ao escrever uma história do continente europeu com o Noites Europeias, nesse caso uma história de clubes, ficou claro na minha cabeça que aquela história tinha que ser contada a nível de países.
Não deixa também de ser um filho da pandemia. Aqui na Espanha ficamos três meses em lockdown, não podíamos ir para a rua. Aproveitei esse período para ver muito futebol antigo, para ler muito. E também o fato de que a edição de 2020 da Euro foi adiada, então haveria uma margem para escrever. Não havia um único livro no mundo sobre a Eurocopa. Há livros sobre edições em particular, mas não sobre toda a história do torneio. Sueños de la Euro acaba por ser um livro pioneiro também.
A Panenka é provavelmente o lugar ideal para uma publicação como essas, no qual há uma identidade forjada nas histórias menos conhecidas, que fogem do relato já consagrado. Como foi o contato com a revista?
Quando escrevi o livro, tinha a ideia de que ele saísse em uma editora como a Panenka. A partir do momento em que eles começam a editar livros, percebi que havia uma margem para publicar com eles porque eu já tinha escrito textos em diferentes números da revista. Tinha essa porta aberta para plantear a possibilidade de publicar o livro. Escrevi a eles, que gostaram da ideia, e me disseram que queriam ver o produto final. Terminei uns três, quatro meses depois da conversa inicial. Mandei o manuscrito, eles ficaram encantados. O livro era um bocadinho maior do que na edição original, porque tinha muita informação. E precisava ficar menos pesado também. Então eles fizeram o processo de edição até chegar na versão publicada.
E o livro tem o prefácio de Vicente Del Bosque, campeão da Euro em 2012. Foi fácil convencê-lo e no que consiste o relato dele?
Del Bosque é um bom amigo da Panenka desde o início da revista. Ele se mostrou um gentleman, tive a chance de conversar com ele. Não é um personagem, não usa nenhum tipo de máscara. Ele gostou da ideia de ser parte do projeto. O prefácio é a experiência dele como um homem do futebol que viveu a história das Eurocopas. A primeira edição [em 1960] quando ainda era criança. Ele se lembra de ver os jogos pela televisão nas ruas de Salamanca, porque ele não tinha televisão em casa. Ele estreia pela seleção espanhola em um jogo de classificação para a Eurocopa. Ele se lesiona pouco antes da Copa do Mundo de 1978 e não vai à Argentina, então a única competição que ele joga pela Espanha é a Euro-1980. Ele era muito bom jogador, apesar de que se fala muito pouco sobre isso. Além de ganhar a Copa de 2010, ele também ganha a Euro de 2012. E ele fala dessa experiência, a importância de motivar os jogadores, de ter jogadores como Xavi, Iniesta, David Silva, Jordi Alba, que entenderam a relevância do torneio para ele e também para as suas carreiras.
“Esse livro é uma homenagem ao meu eu pequeno, ao meu eu criança. Provavelmente comecei a escrevê-lo inconscientemente à medida em que fui me apaixonando pelo futebol. Essa paixão nasceu paralelamente a jogar bola, a ver o jogo”
No livro você afirma que a Eurocopa serviu para a reconciliação do continente no pós-guerra. Como foi esse processo?
Foi extremamente complicado. A Eurocopa é a última competição de seleções a ganhar forma. Nasce ao mesmo tempo que a Copa Libertadores. Já havia Copa América desde os anos 1910. A Euro é a última a ganhar vida. E isso se explica porque a Europa é um quebra-cabeça político muito difícil de decifrar. O primeiro capítulo explora as ideias por trás do torneio, um continente que vivia em diferentes velocidades no início do futebol. Havia um torneio de seleções apenas do Reino Unido, outro de seleções da Escandinávia. Inspirada na Copa América, surge a ideia de criar uma competição parecida na Europa. A ideia é passada a Jules Rimet, presidente da FIFA, que acha interessante, mas não havia como organizar mais um torneio além da Copa do Mundo naquela época. O projeto então vai para a gaveta. Nos anos 1930 tem a ascensão do fascismo e do nazismo, depois a Segunda Guerra e, na sequência, a Guerra Fria. Eram todos eventos políticos que faziam com que fosse impossível congregar seleções em um único torneio. É apenas na década de 1950 que enfim nasce a fase final do projeto Eurocopa.
Depois da criação da Lei Bosman, nós temos hoje clubes que são seleções multinacionais, e muitas vezes mais fortes inclusive do que as próprias seleções de seus países. Isso tirou importância do jogo entre seleções no seu entendimento?
Sem dúvidas. Para mim, há um antes e depois do ano 2000. Sempre digo que a Euro 2000, junto com o Mundial de 1998, são as últimas duas competições grandes de seleções que representavam o futebol dos melhores que havia no mundo, que se reuniam em quatro ou cinco semanas para se enfrentar, e os torcedores não podiam ver esses jogadores em outro contexto. Jogadores ainda buscavam o sonho de disputar um Mundial. Era um período pré-internet, uma nova concepção de comunicação global com a TV por satélite. Todas as competições foram se esvaziando de importância. Você podia ver os grandes talentos jogando a cada semana. Esses jogadores que jogavam em clubes medianos, ou mesmo sul-americanos e africanos que jogavam em seus países, estavam restritos aos Mundiais e aos torneios de seleções. Ainda havia também espaço para o talento puro, do talento de rua, natural, casos de Ronaldo, Figo, Rui Costa, Bergkamp.
Os torneios depois passaram a ser eventos da ideia coletiva, e não mais da celebração do individual, do futebol como arte. O Mundial de 2006 já tem uma dinâmica em que a América do Sul deixa de ganhar, são quatro europeus os semifinalistas daquela edição. Até hoje continuamos sem ver um sul-americano capaz de ganhar o Mundial. E com a Eurocopa passou algo parecido, se desvalorizou muito. Aprendíamos os nomes dos jogadores pelos álbuns de figurinhas, porque não os víamos jogar. E com a TV a cabo e a internet, isso desaparece. Hoje eu posso escalar a seleção sub-17 do Brasil.
Em uma entrevista que a própria Panenka fez com você em uma Live no Instagram, você classifica Portugal como uma seleção de Euro, não de Mundial. Como é essa diferenciação?
Eu acredito que na Europa há países que se sentem mais cômodos competindo contra rivais do continente. Não que Portugal seja incapaz de competir em Mundiais, já foi semifinalista duas vezes. Mas eles se sentem mais à vontade competindo dentro de uma ordem, e acho que há essa ordem dentro do futebol europeu. Portugal sofre muito com equipes africanas, por exemplo. Perdeu para Marrocos em 1986 (3 x 1), venceu Angola apertado em 2006 (1 x 0), empatou com a Costa do Marfim em 2010 (0 x 0). Há uma anarquia tática nessas seleções, e Portugal não consegue encontrar um antídoto para isso. Em 2006, houve uma hegemonia da ideia europeia de jogo, com quatro semifinalistas, e Portugal esteve entre os quatro melhores.
Já a França é um caso curioso, porque dos grandes países europeus, não se gostava de futebol na França. Até os anos 1970, os franceses gostavam mais de esportes individuais, como ciclismo, tênis, automobilismo. Há regiões em que o rugby é mais importante que o futebol. O que muda são as minorias nos anos 1980 e 1990, com a chegada dos imigrantes que se consolidam no país. Gente que vem de outras realidades onde o futebol é importante. Em 1998, há a seleção dos black, blanc, beur. A França tem uma história bastante particular. Para os franceses, competir numa Euro ou num Mundial é idêntico.
“Sempre digo que a Euro 2000, junto com o Mundial de 1998, são as últimas duas competições grandes de seleções que representavam o futebol dos melhores que havia no mundo. Os torneios depois passaram a ser eventos da ideia coletiva, e não mais da celebração do individual, do futebol como arte”
Você foi ao estádio em 2004 nos jogos da seleção em Portugal?
Não vi nenhum jogo de Portugal ao vivo, não encontrei ingressos. Mas vi outros jogos, incluindo a semifinal da República Tcheca com a Grécia no estádio do Dragão. Como sou do Porto, consegui ir. A República Tcheca era provavelmente a melhor seleção daquela Euro. Assisti a semifinal junto dos gregos, atrás da meta de Petr Cech, onde sai o gol da Grécia no minuto 105. Acabamos abraçados com os gregos, porque eu sentia também que era impossível Portugal perder da Grécia na final. Eu estava enganado. Para os gregos, é praticamente impossível ganhar uma Copa do mundo. Mas ganharam uma Euro, e isso é muito especial. A Eurocopa permite a essas nações pequenas, menores, ter esses momentos de felicidade. Aconteceu com a Dinamarca, com a própria Holanda em 1988 depois de vice-campeonatos mundiais. A Eurocopa faz mais gente feliz.
Qual o seu jogo inesquecível de Euro?
Eu vi todos os jogos, literalmente todos. Desde 1960. Recorrei ao Footballia. É muito difícil escolher um porque há contextos muito particulares que podem influenciar para que uma Eurocopa seja mítica ou não. Se tivesse que escolher só um jogo, explicar o que significa a Eurocopa, eu iria a um jogo que tem tudo. O Itália x Holanda na semifinal de 2000. A Itália é mais Itália do que nunca nesse dia, e a Holanda é mais Holanda do que nunca. Joga-se na Holanda, mas na história das Euros quase nunca é positivo para as seleções jogar no próprio pais. Eram grandes gerações nas duas equipes, um jogo que tem drama, expulsões, Totti x Bergkamp, Kluivert x Del Piero. Acaba da forma mais dramática e inesperada possível. É uma história tão incrível.
E ao pesquisar e escrever a história de toda a competição, qual a história que mais te marcou, a mais bonita na sua opinião?
Para mim, a história mais bonita… O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes, já disse aquele sábio. E é verdade. Tem a possibilidade de tirar o melhor de nós e também o pior de nós às vezes. E a Eurocopa conseguiu criar um continente unido. Hoje a extrema direita tem uma influência sobre a Europa que é muito maior que o desejável. Dentro dessas histórias, fico sempre com a da República da Irlanda. Uma Irlanda que chega à Euro em 1988 desprezada por todos, por culpa do IRA, do terrorismo, era um país odiado pelos outros. A imagem que o mundo tinha da Irlanda era a de um país prestes a morrer. De todos os países das ilhas britânicas, era o menos importante. Irlanda não era ninguém. E de repente, comandados por Jack Charlton, com jogadores negros — o que não era comum — , jogadores com pais que fugiram por conta do terrorismo, eles se classificam e ganham da Inglaterra no primeiro jogo, um simbolismo absurdo. Depois se classifica para os Mundiais de 1990 e 1994. Mas tudo começa ali, na Euro. Aquela seleção ficou tão positivamente associada ao país, uma espécie de embaixadores da Irlanda para o mundo, e que o futebol tenha tido sua parte nesse processo de paz, graças a uma seleção que disputou uma Euro inesperada, diz muito sobre a Eurocopa. É um torneio que valoriza a união de um continente.