Andrew Downie: “Para cada um falando bem de Sócrates, tem outro falando ‘esquerdista de merda’”

Livro que conta a vida do ídolo corintiano tem prefácio de Johan Cruyff e apresenta faceta conservadora de Sócrates nos anos 70

Bruno Rodrigues
Futebol Café
6 min readJun 6, 2017

--

Arte do ilustrador Gonza Rodríguez, que gentilmente a cedeu para a matéria (Crédito: Behance/Gonza Rodríguez)

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira era um homem tão preocupado e ligado à imagem do Brasil que tinha até o adjetivo pátrio “Brasileiro” em seu nome. Mas sua trajetória, interrompida com a morte precoce aos 57 anos em 2011, precisou do trabalho de um escocês para que fosse contada minuciosamente na mais nova biografia sobre o craque do Corinthians e da Seleção Brasileira, “Doctor Socrates: Footballer, Philosopher, Legend”. E por que essa biografia talvez seja a mais importante biografia de Sócrates? Porque foi escrita a partir de memórias deixadas por ele mesmo, aproveitadas pelo jornalista Andrew Downie.

Há quase 18 anos no Brasil, Downie, repórter da Agência Reuters no país, começou o livro de Sócrates graças a outro jogador histórico da Seleção: Garrincha. Isso porque o jornalista foi responsável pela tradução para o inglês da biografia do Anjo das Pernas Tortas, de Ruy Castro. Na sequência, a mesma editora que traduziu a obra de Garrincha perguntou a ele se queria traduzir também um livro com memórias escritas por Sócrates. “Falei ‘claro que sim’. Traduzi o livro de Sócrates, mas não saiu por vários problemas, principalmente pelos direitos autorais que ele (Sócrates) não conseguiu resolver na época”, conta Andrew Downie, em entrevista ao Futebol Café.

O projeto ficou suspenso durante anos, até que Downie resolveu retomá-lo após a Copa do Mundo de 2014. “Estava com mais tempo e decidi que era a hora. Era importante escrever sobre essa pessoa, que para mim transcendeu o futebol. Talvez o único jogador mais importante fora do que dentro de campo”, diz o escocês.

A iniciativa de contar a vida de Sócrates não poderia deixar de passar por episódios importantes — apesar de já conhecidos e bastante falados — como a Copa de 82, a Democracia Corinthiana e as rusgas com Emerson Leão, a passagem fracassada pelo futebol italiano, na Fiorentina, e o envolvimento político do jogador em questões nacionais como nas Diretas Já. Contudo, no processo de apuração da biografia, Andrew Downie acabou descobrindo um outro lado do Doutor. “Quando a gente conversa sobre o Sócrates, todo mundo lembra dele como um homem de esquerda. Acreditamos que ele era sempre assim. Mas não era. Nos anos 70, ele era conservador. Falou por exemplo, em 1976, que futebol e política nunca deveriam se misturar. Falava coisas que hoje em dia seria impossível imaginar que Sócrates falou. Mas ele mudou com o tempo”, afirma Downie.

Capa de “Doctor Socrates: Footballer, Philosopher, Legend”. Downie diz que essa imagem foi escolhida pois lembra a icônica foto de Che Guevara (Crédito: Divulgação)

Tempo e contexto, como o autor diz durante a conversa, foram determinantes para a mudança do pensamento político de Sócrates a partir dos anos 80. Foi a época do declínio da ditadura, com sinais claros da perda de força do regime em relação às décadas anteriores. Mudar para São Paulo, um lugar onde era maior o fervor por discussões sobre os rumos do país e sobre a necessidade de um governo enfim democrático, também contribuíram para que ele refletisse de forma mais profunda sobre essas questões. Ribeirão Preto, na época, ainda era uma “cidade conservadora de interior”, diz Downie. Mas a guinada dele à esquerda possivelmente não teria acontecido de forma tão convicta sem a participação decisiva de duas pessoas em sua vida: o jornalista Juca Kfouri e Adilson Monteiro Alves, diretor do Corinthians no período da Democracia Corinthiana. “Em 1979 conheceu o Juca, em 1981 conheceu o Adilson. E essas duas pessoas mudaram a cabeça do Sócrates para o socialismo, para uma visão liberal”, conta o jornalista.

Nos últimos meses, Downie falou com alguns veículos de imprensa a respeito do livro e também divulgou seu trabalho nas redes sociais. O fato de sua obra se tratar de Sócrates, claro, gerou grande repercussão no exterior e no Brasil. Por aqui, porém, o escocês diz que esperava por um retorno um pouco mais positivo da parte dos brasileiros: “Para cada pessoa falando bem do Sócrates nas mídias sociais, tem outra falando ‘esquerdista de merda’, coisas assim”. Isso, pensa Downie, é fruto do momento conturbado que vive o país atualmente na esfera política. “Mostra como o Brasil mudou, ficou mais polarizado. Nos anos 80, quando Sócrates lutou contra a ditadura, ele tinha respeito mesmo de pessoas que não concordavam com ele”, completa.

O autor do prefácio da biografia é ninguém menos que Johan Cruyff, o que foi conseguido graças à viúva do brasileiro, Kátia Bagnarelli. Mas isso está longe de ter sido uma mera coincidência ou mero gesto de bondade do holandês. Ambos foram rebeldes do futebol, algo que uniu suas trajetórias até o fim. Cruyff, quando jogador, lutou para que pudesse usar a camisa do jeito que queria na Copa do Mundo de 1974, sem as três listras da Adidas; pregava uma maior independência do jogador de futebol; discutia com técnicos e dirigentes, sempre opinando e convicto de que suas opiniões eram importantes. Como técnico, foi um dos grandes pensadores do esporte e influência para várias gerações de atletas e treinadores, como Pep Guardiola por exemplo. Cruyff foi um filósofo da bola, Sócrates também. E ambos morreram vítimas de seus próprios excessos: o holandês por um câncer no pulmão, causado principalmente pelo uso do cigarro. Sócrates pela bebida, que tanto lhe deu prazer, mas acabou levando-o embora.

Andrew Downie não esconde sua admiração por Sócrates quando fala tanto do jogador como do homem protagonista de seu livro. Entretanto, tenta deixar claro que essa admiração não faz com que o texto seja uma lembrança somente das qualidades e conquistas de Sócrates, mas também de suas contradições e seus erros. “Eu sou jornalista, primeiro sou jornalista. O que era o mais importante era procurar os fatos e escrever os fatos, doa a quem doer. Então tentei escrever esse livro com o maior carinho e respeito por ele, pessoa que admiro. Mas ele é ser humano, como qualquer um. Ele erra também. E mesmo fazendo cagadas fora do campo, o que ele fez nessa transição de ditadura para democracia, o que ele fez pelos direitos humanos, as Diretas Já, lutando pela liberdade de expressão... Acho que isso é o mais importante”, opina.

Entre os erros e fracassos do jogador está a passagem pela Fiorentina, em 1984. Nos anos 80, a Itália abrigava o que havia de melhor em termos de futebol no mundo, com equipes fortes e reforçadas por grandes craques internacionais. Sócrates, contudo, não foi capaz de se destacar no calcio e deixou Florença pela porta de trás. Perguntado sobre esse capítulo da vida de seu personagem, Downie explica: “Ele era o homem mais brasileiro que existia. Ele sentia falta de calor humano, da cerveja no fim do dia, da música, de estar com a família. Sentiu muita falta disso”.

E muitos seguem sentindo a sua falta. A falta de um dos homens mais brasileiros de todos os tempos, Sócrates Brasileiro.

--

--