Livraria Entre Tiempos, em Buenos Aires, é um sonho para o fã de futebol

Localizada no bairro de Monserrat, local vende todos os tipos de livros futebolísticos e muitas revistas históricas

Bruno Rodrigues
Futebol Café
7 min readMar 13, 2018

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A livraria que você, se estiver em Buenos Aires, precisa conhecer (Crédito: Bruna Rebouças Clara)

Viajar por Buenos Aires é estar permanentemente em contato com futebol. De manhã, trabalhadores do centro portenho mergulham medialunas no café com leite enquanto olham atentamente as páginas esportivas dos jornais. No táxi, o barulho do chaveiro do Racing batendo no painel do carro. E na feira de San Telmo, a coisa que o dono da barraca de antiguidades mais gosta de ouvir dos turistas depois que eles comprarem alguma coisa: “Para que time você torce?”. Aí é um tal de medalhinha do River pra cá, tatuagem do Independiente pra lá, carteirinha de sócio vitalício do Boca. Um show de demonstrações da paixão por seus clubes de coração.

Contudo, um dos paraísos futebolísticos portenhos, pelo menos para quem (como nós) busca literatura do futebol local, está longe dos estádios, num bairro pouco falado e numa rua sem fama. A antítese do frenesi constante vivido nas ruas da cidade, alvoroço esse no qual o futebol está inserido. Desavisada, a pessoa que passar em frente ao lugar pode nem perceber que ali, no número 1108 da Salta, em Monserrat, funciona a livraria mais legal de Buenos Aires: a Entre Tiempos.

Fui lembrado da existência da Entre Tiempos por um colega chileno que tem um perfil dedicado ao Colo-Colo no Twitter, o Gol Triste Ediciones. Sabendo que eu estava por lá, perguntou se daria uma passada na livraria. Confesso que fui à Argentina sem incluir a parada no roteiro, mas depois do aviso, tratei de colocá-la em algum lugar na programação. Na segunda-feira, dia da volta ao Brasil, fomos até a rua Salta conhecer o espaço.

Escondido no 1108 da rua Salta, em Monserrat, fica a livraria Entre Tiempos (Crédito: Bruna Rebouças Clara)

Aqui vale um aviso para você que vai ler este texto até o fim, deixar seu aplauso e também planejará uma visita à Entre Tiempos: ela não é uma livraria comum e seus horários são alternativos. Por mais que o Google te avise que o local funciona das 14h às 18h, é capaz que esteja fechada. Ao menos momentaneamente, como foi no meu caso. Eram 16h20 quando toquei a campainha e nada. O Google avisou: o responsável voltaria dali 10 minutos. Uma volta no quarteirão de Monserrat, bairro velho onde se pode sentir a Argentina real, e voltamos para a porta. Toque na campainha e, conforme o avisado, lá estava quem deveria estar.

Quem nos recebe com um sorriso e um “pasen, por favor” é Esteban Bekerman, dono da Entre Tiempos. Esteban é jornalista e professor na Escola de Jornalismo do Círculo de Periodistas Deportivos, na qual ministra desde 1997 a disciplina “História do Futebol” e, desde 2010, a disciplina “História do Selecionado Nacional de Futebol”. Trabalhou como subeditor dos portais Perfil.com e 442.perfil.com, além de colaborar com outros veículos. Em 2015 decidiu sair do grupo editorial em que trabalhava para passar mais tempo ao lado da filha pequena e, desde então, administra a Entre Tiempos, livraria especializada em futebol e que promove também oficinas de pesquisa sobre o tema. Ou como ele mesmo gosta de dizer do local, “a única que você vai encontrar nesse segmento em toda a Buenos Aires”.

Estar dentro da Entre Tiempos é um negócio impressionante. Numa mesa que fica no centro do espaço, estão empilhadas centenas de revistas de todas as épocas e títulos que você imaginar. Exemplares da El Gráfico se perdem em meio a edições de Placar, Revista Un Caño, revista da Conmebol, uma revista chamada Boca…! com Heleno de Freitas na capa e até publicações que cobriam as divisões de acesso argentinas, como a El Hincha del Ascenso e outra de nome Este es El Ascenso. “Essa aí era eu que fazia com um grupo de colegas, nos anos 90”, diz Esteban com um sorriso, orgulhoso.

Revistas, revistas e mais revistas de futebol. Todas à venda na livraria (Crédito: Bruna Rebouças Clara)

Numa estante, livros sobre clubes que você talvez nunca tenha ouvido falar: El Porvenir, San Telmo, Defensores de Belgrano, Excursionistas. Em outra, anuários antigos sobre o futebol mundial. E uma série de outros livros a respeito de temáticas argentinas variadas, como biografias de grandes craques, histórias do futebol focadas em determinadas regiões do país, a relação de futebol e política, contos futebolísticos…

Livros sobre diversos assuntos na Entre Tiempos, inclusive sobre clubes das divisões de acesso (Crédito: Bruno Rodrigues)

Chamou atenção, porém, um exemplar perdido por ali da inglesa The Blizzard, publicação do jornalista britânico Jonathan Wilson, autor do livro A Pirâmide Invertida. Esteban diz que a Blizzard é o que há de melhor no mercado de revistas futebolísticas pelo mundo e conta uma passagem curiosa de sua relação com Wilson, que foi à Argentina pesquisar arquivos e falar com pessoas para os trechos dedicados ao país no livro sobre a história das táticas.

“Jonathan (Wilson) veio para cá, ficou na minha casa e comemos pizza juntos. Mas até disse a ele, e ele não gostou muito, que sua obra (A Pirâmide Invertida) tinha muitos erros envolvendo o futebol argentino na década de 40”, conta Esteban. “Os ingleses olham a coisa meio de cima para baixo”, prossegue, “mas quando ele retornou a Buenos Aires, apesar de não ter ficado muito feliz, pudemos corrigir algumas coisas que haviam sido publicadas”.

De Jonathan Wilson e sua The Blizzard, a conversa fluiu entre outras revistas pelo mundo, como a escocesa Nutmeg, falamos da decadência de Placar no Brasil e até sobre jogadores argentinos que jogaram no São Paulo. Fiz a ele uma espécie de mea culpa pela falta de um trabalho decente de pesquisa, por parte de nós jornalistas, sobre jogadores estrangeiros que vêm ao Brasil. Usei o exemplo de Lucas Pratto, que já estava há dois anos no país jogando pelo Atlético-MG, mas em São Paulo ainda se sabia muito pouco sobre o jogador. Na esteira do tema, ele me mostrou um pôster do Independiente da década de 40 em que estão Antonio Sastre e Rengasneschi, dois gringos históricos do Tricolor. Acho que se eu tivesse insistido nos “são-paulinos argentinos”, Esteban teria revirado a livraria inteira e encontrado algum tipo de material sobre cada um deles.

Fotos antigas do futebol argentino decoram as paredes da livraria de Esteban (Crédito: Bruna Rebouças Clara)

Aproveitando que a conversa se enveredou para a história do futebol, Esteban falou sobre os cursos que promove na Entre Tiempos. Ao longo do ano, ele oferece aos alunos — em sua maioria jornalistas, mas também historiadores e fanáticos por futebol — ferramentas e empresta também material da livraria para ajudar nas pesquisas dos participantes do curso. Ele diz que já ministrou oficinas para gente do Brasil e até para um alemão. A história com o aluno germânico também rendeu bons minutos de conversa.

“Ele é torcedor do Rot-Weiss Essen, um clube que hoje está na 4ª divisão alemã, mas que já foi muito forte principalmente na década de 50. Descobrimos, depois de uma pesquisa, que o Rot-Weiss Essen veio à Argentina em 1953 e ganhou do líder e do vice-líder do campeonato, respectivamente Independiente e San Lorenzo, e foi ao Uruguai e ganhou do Peñarol”, conta.

Mas não era qualquer time do Peñarol, e sim a equipe que havia sido base da Celeste campeã em 50, no Brasil, a Celeste do Maracanazo. “O Peñarol de Obdulio Varela! Quando descobrimos que o Rot-Weiss havia ganhado do Peñarol, e com Obdulio Varela em campo, ele (o aluno alemão) se emocionou, eu me emocionei... Veja até onde podemos ir na investigação sobre futebol”, afirmou Esteban, com brilho nos olhos, mais uma vez orgulhoso do trabalho que faz com a Entre Tiempos.

Papo de quase uma hora com Esteban Bekerman, dono do espaço e doente por futebol (Crédito: Bruna Rebouças Clara)

Torcedor do Vélez Sarsfield, ele começará em breve um curso no clube sobre a história do Fortín. Brinquei e pedi a ele que o foco das aulas não fosse o Vélez de 94. Esteban riu e disse que o curso vai parar nos anos 90. “A ideia é mostrar o que não se sabe do clube. Dos anos 90 para cá a história é muito conhecida”, completou. Melhor assim.

Depois de quase uma hora de papo, chegou o momento de ir embora. Esteban nos acompanhou até a porta quando tocou a campainha da livraria. Era o torcedor do Rot-Weiss Essen! Esteban o abraçou e nos apresentou a ele: “Falávamos justamente de você. Eles são do Brasil”, disse o argentino ao alemão, falando sobre o casal de brasileiros ali presente. Aperto de mãos, uma tentativa de estabelecer contato verbal com um “hi” e tchau!

A conversa entre eles certamente renderia algumas boas horas de futebol. Uma pena eu não estar mais lá para presenciar. Aliás, uma pena ainda maior eu não viver em Buenos Aires, para poder dar uma passada na livraria num fim de tarde qualquer e poder me perder em meio ao arsenal de literatura futebolística de Esteban e sua Entre Tiempos.

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