Machismo contra Jornalistas no Twitter

O debate sobre desigualdade de gênero deve ser feito baseado em evidências

Deborah Bizarria
Futilidade Marginal
4 min readDec 7, 2021

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Recentemente, foi repercutido um estudo que afirma que jornalistas mulheres são ofendidas duas vezes mais em seus perfis no Twitter, comparadas aos colegas homens. Embora o resultado apontado seja totalmente possível, a falta de clareza sobre a metodologia utilizada impossibilita que haja confiança de que essa conclusão corresponde à realidade.

Chamada da matéria sobre o estudo na Folha de São Paulo

Se você usa o twitter certamente já viu o seu jornalista favorito recebendo um xingamento. Comunista, imbecil, idiota, canalha e incompetente são alguns do vários xingamentos direcionados a jornalistas, especialmente àqueles que se dedicam a comentar a política nacional. Também tem-se a percepção de que as mulheres que trabalham com jornalismo recebem os piores xingamentos, além dos mencionados elas ouvem muito que são putas, fracas, loucas e entre outros.

Em tempos de fakes news e negacionismo científico, ou mesmo para nos prevenirmos contra simples erros, é sempre importante exercermos algum questionamento sobre como um estudo chega ao número que propõe.

Então, foi o que fiz, decidi procurar a metodologia para entender como chegaram à conclusão de que mulheres jornalistas são duas vezes mais xingadas do que seus colegas. Até o momento, a única fonte de dados desse estudo é uma matéria jornalística feita pela Revista AzMina que é uma das 5 organizações responsáveis pelo levantamento citado e adianto que a matéria foi pouco esclarecedora.

O pouco que temos se trata do seguinte:

“Foram monitorados 200 perfis de jornalistas brasileiros na rede social. A partir de um dicionário composto de palavras ofensivas, misóginas, sexistas, racistas, lesbo, trans e homofóbicas, coletamos 7,1 milhões de tuítes com conteúdo ofensivo em 133 perfis de mulheres jornalistas e 67 homens. Em uma análise mais minuciosa, que considerou o período entre 1 de maio e 27 de setembro, o monitoramento chegou a um grupo de pouco mais de 8,3 mil tuítes, com cinco ou mais ações de engajamento (RT e/ou curtidas). Eles foram verificados um a um para identificar se o conteúdo era ou não um ataque direto ao jornalista.”

Qual o critério de escolha dos 200 jornalistas brasileiros? Foram escolhidos os mais relevantes em termos de seguidores ou a escolha foi feita de modo reverso, em que os mais xingados foram os escolhidos para a amostra? No corpo do texto e em nenhum outro documento publicado até o momento¹, há resposta para essas perguntas. Ainda há outro problema, há uma grande desproporção na divisão de gênero da amostra, são 133 perfis femininos e 67 masculinos, num universo de jornalistas de política que parece majoritariamente masculino.

Além disso, há outra questão sem esclarecimento. Essa matéria também aponta:

“(…) enquanto 8% dos tuítes ofensivos direcionados para os jornalistas homens eram de fato hostis, 17% dos direcionados às jornalistas mulheres eram ataques.”

Ao ler esse trecho, ficamos com a impressão de se tratar de uma média, ou seja, considerando os perfis analisados, 17% dos tuítes (em média) direcionados a mulheres eram xingamentos, e 8% (em média) para homens. Simultaneamente, a matéria colocou uma lista dos jornalistas mais xingados (ver imagem), e nessa lista a mais xingada, Eliane Cantanhêde, teve 11,59% do total de tuítes. O texto e a imagem não dizem se esse “total” é de todos os tuítes ou se refere ao total de tuítes ofensivos. O fato é que analisando os números, com alguma atenção, fica claro que esses dois conjuntos de dados se referem a coisas diferentes, contudo, considerando o que está disponível para os leitores, fica impossível de saber do que se trata exatamente.

Também senti falta de uma comparação mais direta com os xingamentos recebidos por homens. O texto também aponta o seguinte “No levantamento realizado no Twitter, constatou-se que os usuários que disparam ataques contra jornalistas tentam deslegitimar a capacidade intelectual feminina para o exercício da profissão (…), mulheres receberam xingamentos como jumenta, incompetente e fraca, mas os homens também receberam ofensas como imbecil, idiota, analfabeto e incompetente. Ou seja, de acordo com os dados disponibilizados, os jornalistas homens também tiveram sua capacidade intelectual questionada, enquanto o texto dá a entender que apenas as mulheres recebem esse tipo de questionamento.

A impressão que fica após ler cuidadosamente as informações disponíveis na matéria é de que o estudo foi feito sob medida para que o resultado fosse encontrado. Não posso afirmar se essa foi a intenção dos autores, mas pode-se dizer que houve pouco cuidado ao divulgarem os dados da forma que fizeram. As conclusões do trabalho foram bastante difundidas pela imprensa, quando na verdade, pelo que está disponível até agora, é impossível verificar a veracidade dessas conclusões.

Espero que após esta exposição tenha ficado nítido que o tal estudo não é transparente sobre a forma e quais critérios foram utilizados para que chegassem a conclusão apresentada. Se queremos que o debate acerca da desigualdade e a violência de gênero seja levado a sério, é necessário que as pesquisas neste campo sejam levadas igualmente a sério. De outro modo, estaremos cometendo o mesmo tipo de negacionismo que costumamos acusar os outros — ainda que tenhamos boas intenções.

¹Antes da publicação deste texto, entrei em contato com uma das organizações responsáveis pelo estudo pedindo mais detalhes sobre a metodologia. Recebi uma resposta bastante educada dizendo que “Está sendo preparado um relatório, para o fim do projeto, com a metodologia detalhada. São várias etapas de pesquisa, inclusive.”, logo, de acordo com um dos organizadores serão disponibilizados mais detalhes em algum momento no futuro. Espero que a pesquisa completa esclareça os pontos levantados aqui.

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