Resenha: Eros e Psiquê

Como o mito do “Hércules” Feminino ainda é atual

Deborah Bizarria
Futilidade Marginal
4 min readJan 23, 2021

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Eros e Psiquê é uma leitura essencial para as mulheres (e homens) contemporâneas. Embora tenha sido deixado de lado frente a outros clássicos gregos como A Ilíada e A Odisséia, a história de Psiquê é inspiradora. Esse mito revela que não só devemos buscar melhor compreender o processo de transformação do feminino, bem como nos lembra essa transformação impacta também a concepção do masculino (representado por Eros).

O autor, Erich Neumann, divide a obra em duas partes: a narrativa do completa do mito e a sua análise sobre o desenvolvimento da psique feminina através da heroína. Na primeira, a princesa Psiquê ao receber a adoração dos homens por causa de sua beleza acaba despertando a inveja e o ódio da deusa Afrodite. Como os deuses do Olimpo dificilmente perdoam, Afrodite deu instruções ao filho, Eros, para que ele fizesse com que a jovem se apaixonasse pelo homem mais feio do mundo e assim pagasse pela sua ofensa.

Eros e Psiquê, Jean François Lagrenée

Mas incapaz de cumprir sua tarefa, Eros se relaciona em segredo com Psiquê — sem que nem ela saiba quem é o marido que aparece em seu quarto todas as noites. Instigada pelas irmãs malvadas, Psiquê quebra o juramento feito a Eros e descobre sua identidade e graças a isso Eros se fere e foge da amada. Ao descobrir a traição de seu filho, Afrodite se enfurece e por isso, semelhante a Hércules, Psiquê precisa realizar tarefas aparentemente impossíveis. A jovem deve separar milhares de grãos misturados, pegar lã dos perigosos carneiros dourados, buscar água na íngreme fonte do rio Estige e ir ao mundo dos mortos trazer para Afrodite uma caixinha contendo parte da beleza da deusa Perséfone.

Por fim, quando estava perto de completar o último desafio, Psiquê decide pegar a beleza de Perséfone para si mesma, e ao fazê-lo cai em um sono profundo. Tal como em Bela Adormecida ou na Branca de Neve, Afrodite sabia que a curiosidade a faria abrir a caixa. Mas curiosamente é essa aparente derrota que dá a Psiquê sua verdadeira vitória: Eros escapa da mãe e desperta Psiquê e convencendo Zeus a permitir que Psiquê ganhe a imortalidade, o casal pôde finalmente ficar junto. Do enlace nasceu Volúpia, a deusa da virtude.

Terminada a narrativa tratada no livro, Erich Neumann faz um trabalho incrível em detalhar sobre o significado arquetípico do mito para o desenvolvimento do feminino. Cada parte da história de Psiquê retrata um aspecto do seu inconsciente que vem à tona e a torna cada vez mais um indivíduo livre e dotado de ação. Vale frisar que o mito é arquetípico porque não se trata de uma trajetória específica de uma pessoa (ou mulher) e sim um padrão abstrato que retrata as fases que compõem essa trajetória comum.

Entre tantas considerações ricas e interessantes, o que mais me saltou aos olhos foi a consideração que Neumann faz acerca do papel do feminino dentro do patriarcado. Para o autor, a personalidade feminina muda de um estado de pertencimento aos valores do “matriarcado” para um estado de independência e construção do ego ou identidade. Tal mudança só pode ocorrer em contato com o arquétipo oposto ao matriarcado, “O Grande Pai”. A situação do patriarcado, conhecida nos países ocidentais, é marcada pelo confinamento da vida feminina submetida à consciência do masculino e de seus valores.

A situação em que o feminino está submetido ao patriarcado só pode ser resolvida pelo encontro: quando Psiquê decide desvendar a identidade do marido misterioso (Eros). Somente quando o feminino e o masculino são contrapostos em pé de igualdade, foi possível para a heroína começar seu caminho heróico no desenvolvimento da sua própria personalidade.

Na história de Psiquê, o matriarcado é representado, em parte, pelas irmãs que ao passo que reforçam a noção de sororidade, reforçam também a inimizade aos homens e o senso de perigo que representam. Por isso, ela não só supera a hostilidade ao masculino através do encontro e da descoberta do amor (Eros), como também é capaz de transformar o adolescente e imaturo Eros em um adulto e salvador, livre do domínio da mãe.

Psiquê durante sua trajetória passa de inocente donzela a heroína imortal. A sua força interior, conquistada através da superação das tarefas e de seu amor, é tão grande que ela consegue enfrentar a violência dos arquétipos (feminino e masculino) em pé de igualdade, diz Neumann. Contudo, todo esse processo não acontece em oposição aos deuses, como ocorre no mito de Prometeu, mas sim através de um arroubo apaixonado: é o seu amor a Eros que une Psiquê (ou alma humana) ao Divino.

Então, em tempos de debate sobre feminismo e protagonismo feminino, Psiquê serve como um lembrete de que o real inimigo não é o “o outro” (o masculino), e sim a nossa inconsciência acerca das ideias e arquétipos que nos aprisionam. Logo, não é com o embate ou com confronto que iremos resolver as diferenças entre homens e mulheres e sim através do encontro e da descoberta.

Apesar de não ser uma leitura fácil a partir da segunda parte, o livro Eros e Psiquê do Erich Neumann já vale a pena pelo conteúdo do próprio mito. Em um contexto em que se fala da falta de heróis femininos, Psiquê nos lembra que não precisamos inventar novas histórias para representar o empoderamento do feminino, antes o heroísmo feminino pode ser encontrado mesmo na antiguidade.

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