Resenha: O Mito da Beleza

Deborah Bizarria
Futilidade Marginal
6 min readApr 4, 2021

Em O Mito da Beleza, publicado em 1991, Naomi Wolf trata sobre como os ideais inalcançáveis de beleza, além de prejudicar as mulheres, foram criados para mantê-las longe das instâncias de poder. O tema tratado é sem dúvida relevante em nossos dias: muitas mulheres têm uma preocupação excessiva com a própria aparência, o que pode levar a distúrbios alimentares e gastos excessivos em cosméticos. Embora o livro trate de questões femininas importantes, a abordagem da autora não só falha em apresentar dados corretos, como também acaba atrapalhando o grupo que busca proteger: as próprias mulheres.

Wolf vai além de dizer que empresas ligadas à beleza lucram com as inseguranças femininas. Para ela, existe todo um acordo através do qual “os donos do poder” querem manter as mulheres como uma mão de obra barata, insegura e dócil para ser explorada, se utilizando do mito da beleza para tal fim. Nesta resenha, pretendo elencar os vários problemas que encontrei na sua teoria e, ao final, como esse tema poderia ter sido melhor abordado.

Insegurança feminina como uma necessidade de mercado

No capítulo intitulado ‘o trabalho’, a autora trata a insegurança crônica que as mulheres sentem frente a tantas imagens irrealistas da beleza como fruto de uma estratégia arquitetada. Ao se sentirem inseguras com sua beleza, as mulheres irão questionar sua própria competência e se manter afastadas de melhores cargos e salários.

“A imagem insatisfatória que as mulheres têm de seu físico nos dias de hoje é muito menos consequência da concorrência entre os sexos do que das necessidades de mercado” (página 79).

Contudo, o argumento não se sustenta. Os pesquisadores Marcus Noland, Tyler Moran e Barbara Kotschwar, ao pesquisar mais de 21 mil empresas, perceberam que a presença de mulheres em cargos de liderança corporativa pode melhorar o desempenho dessas empresas. Ou seja, se o objetivo dos “donos do poder” é aumentar seus lucros, a estratégia apresentada pela autora tem justamente o efeito oposto. Mulheres mais inseguras — e por isso menos dispostas a brigar pelos cargos de liderança -, ao reduzirem a variedade de talentos em altas esferas das empresas, também reduzem seu potencial lucrativo.

Além disso, Naomi Wolf não estabelece com clareza, nem apresenta evidências de como a insegurança com a própria beleza se reflete em insegurança sobre a própria competência. Já se sabe, por exemplo, que mulheres tendem a só se candidatarem a uma vaga ou promoção caso preencham 100% dos requisitos, enquanto homens se candidatam ao preencherem ao menos 60%. Apesar dessa diferença ser real, o livro não apresenta nenhuma pesquisa em que se tenha estudado os vários fatores que levam a essa disparidade, muito menos que comprove que o mito da beleza seja o grande vilão dessa história.

Torna-se difícil a um leitor crítico aceitar que a relação entre o culto à beleza e a desigualdade de gênero no mercado de trabalho se dá através de um grande acordo do “patriarcado”. Grandes empresários estariam mesmo dispostos a iludir mulheres para que estas se sintam inseguras e gerem menos resultado para suas próprias empresas?

Mulheres ricas e famintas

Nos capítulos intitulados ‘A religião’, ‘A fome’ e ‘A violência’, a autora trata sobre como muitas mulheres têm uma verdadeira obsessão com o próprio peso e com restrições alimentares. E de fato, atualmente há ampla discussão sobre como a imagem das modelos pode acabar criando um ideal de beleza irreal e não saudável para a maioria das mulheres. O problema nestes capítulos é que, na tentativa de chamar a atenção dos leitores para questões sérias, Wolf usa dados bem exagerados no que diz respeito a distúrbios alimentares.

“A fome, a náusea e as cirurgias invasivas da reação do sistema contra o feminismo são armas políticas. Através delas, uma tortura política amplamente disseminada está ocorrendo entre nós” (página 371).

Ao afirmar que cerca de 7,5% do total de meninas e mulheres nos EUA tinham anorexia (quando a porcentagem real era de 0,065), ela dá a entender que existe um contingente enorme de garotas ricas que está deliberadamente passando fome em nome da beleza. A quantidade de dados errados sobre esse tema são tantos que o pesquisador Cásper Shoemaker publicou um artigo em que corrige 18 dos 23 dados estatísticos citados por Wolf.

Ela também defende que o mito da beleza no qual a magreza inalcançável é um objeto de desejo é propagado com o intuito de que a fome causada pelas dietas dificulte a luta política feminina — e o mito seria bem sucedido em sua estratégia. Este argumento também é difícil de defender com dados, especialmente porque o peso médio da mulher americana aumentou 13 quilos dos anos 60 até hoje, contrariando a narrativa contada no livro. Além disso, a porcentagem de mulheres tentando seriamente perder peso está atualmente em uma baixa histórica.

Distúrbios alimentares são problemas sérios de saúde. Justamente por isso, não deveria haver motivo para a autora “exagerar” nas estatísticas para chamar a atenção ao problema. Tanto é assim que desde que o livro foi publicado até hoje há muito mais diversidade de peso e formas corporais nas modelos. Também há uma maior preocupação com saúde e bem-estar do que mera preocupação com o peso ideal.

Mulher (sempre) como um sujeito passivo

Nenhum dos pontos que levantei anteriormente constituem o que achei de pior neste livro. O pior mesmo é o tratamento que a autora dá “às mulheres”. Trata-se sempre de um grupo homogêneo, passivo e que, embora tenha conquistado muito nos anos 60, segue aprisionado por um mito orquestrado por homens poderosos.

Ao falar sobre cirurgias plásticas, regimes alimentares e cosméticos, a autora não faz diferenciação sobre a partir de que ponto a maneira como muitas mulheres lida com essas questões passa a ser problemática. Ao colocar todas as formas de lidar com a própria beleza como frutos do ‘mito’, ela tira o poder de agência e escolha das mulheres. Assim, Wolf impede o debate sobre o limiar entre a busca saudável e destrutiva pela beleza, tornando todas uma imposição social na qual as mulheres são meras espectadoras.
Eu escolho acreditar que somos melhores e mais fortes do que a Naomi Wolf descreve em seu livro.

O que tornaria o Mito da Beleza uma boa leitura

Acredito que o livro seria extremamente útil se provocasse reflexões sobre o tema usando ângulos que não foram explorados a contento. Por exemplo, na relação da mulher moderna com a moda, é comum observarmos que para muitas o que vale é a busca daquilo que “todo mundo” está usando, mais do que propriamente o que é belo. O que acaba levando à compra de itens de vestuário pouco práticos, às vezes feios e que serão rapidamente descartados quando a moda passar.

Ou ainda sobre o quanto muitas mulheres parecem se preocupar com o que outras mulheres vão pensar de suas escolhas estéticas — ninguém me convence que homens vão notar mudanças na sobrancelha ou nas unhas. Seria muito positivo se o livro promovesse com mais força a ideia de que mulheres deveriam ser mais tolerantes com as escolhas umas das outras, ou ainda, defenderem uma ideia de beleza que fosse mais inclusiva e pragmática.

Enfim, as possibilidades de discussão acerca do ideal de beleza feminino são inúmeras e é importante que esse debate aconteça, mas não é neste livro que iremos encontrar esse debate.

Foto da autora do “Mito da Beleza”, Naomi Wolf

Há quem possa argumentar que esses problemas decorrem do fato do livro ser de 1991 (tendo sido revisado em 2002). Contudo, creio que não desculpa a autora, visto que ela simplesmente não respondeu às críticas. Ao contrário, continua até hoje a reforçar cada vírgula que colocou em seu livro: “Sou sortuda. Tive uma boa educação. Eu sei que meus livros são verdadeiros. Eles são bem fornecidos. Eles têm centenas de notas de rodapé”.

Ao criar uma teoria sem embasamento e que beira o conspiracionismo, Naomi Wolf está justamente jogando mais lama em cima de um tema caro a suas leitoras e leitores. Se há quem considere “O Mito da Beleza” um bastião do feminismo moderno, sugiro que reveja seus conceitos, pois não se trata de uma obra esclarecedora.

--

--