Review: A Mística Feminina

Mais de 60 anos depois, Betty Friedan ainda é atual?

Deborah Bizarria
Futilidade Marginal
5 min readMay 26, 2020

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Nos Estados Unidos das décadas de 50 e 60, várias esposas e donas de casa relatavam sintomas de um sentimento de vazio que passou muito tempo despercebido, era um problema sem nome. O título do livro nos dá uma pista sobre do que se trata esse problema. A autora, Betty Friedan, usa “A Mística Feminina” para ilustrar a crença de que as mulheres só conseguem se sentir realizadas através do cuidado com a casa, do marido e dos filhos.

Betty Friedan foi creditada como a precursora do Feminismo de Segunda Onda nos EUA, após a publicação de seu livro.

Enquanto a identidade masculina deveria se desenvolver no mercado de trabalho ao fazer contribuições à sociedade, a identidade feminina deveria estar ligada aos afazeres domésticos, educação dos filhos e da sua realização sexual com o marido. Friedan argumenta que nesse novo arranjo, as mulheres estão insatisfeitas por não desenvolverem o próprio potencial enquanto tentam atingir o ideal de feminilidade pregado pela mística feminina.

O livro relata uma sociedade que é marcada pelo reinado feminino no lar em oposição a períodos anteriores de grande a emancipação feminina: seja com a conquista do voto feminino nos anos 20, seja com o trabalho remunerado durante a guerra. O retorno dos soldados americanos que, traumatizados pela violência e pela barbárie da guerra, provocou uma busca pelo conforto do “lar”. E esse lar deveria uma esposa dedicada a ele, aos vários filhos e a uma bela casa no subúrbio.

Como aponta Friedan, o seriado de TV ‘I love Lucy’ serve como uma ilustração da visão da sociedade sobre o que é uma mulher verdadeiramente feminina

Naturalmente, as mulheres abandonaram seus postos de trabalho nas fábricas, nas lojas e na mídia imprensa. Como consequência, para muitas delas, a universidade passou a ser uma mera oportunidade de encontrar um marido e o trabalho fora, uma forma de sustentar a casa enquanto o marido estudava. Mesmo que elas pudessem exercer uma profissão ou seguir buscando mais qualificações acadêmicas, a maioria das jovens preferia se casar logo e se dedicar à vida doméstica. As mulheres que optaram por escolher seguir uma carreira, ainda que tivessem constituído família, eram vistas como ‘masculinizadas’, mulheres que queriam ser homens.

Friedan nos mostra como a visão de mundo da mística era reforçada o tempo todo. A mídia, as revistas femininas, os cientistas sociais e mesmos os educadores corroboravam com a ideia de que as mulheres só deveriam ter interesses sobre aquilo que lhes tocava como mulheres. Com isto, temas como política, economia, psicologia, saúde, artes e o que quer que fosse só deveria ter atenção das mulheres se tivesse alguma relação com a casa, com a educação dos filhos ou com a sua satisfação sexual. Ou seja, lhes era negado qualquer interesse que estivesse fora do ambiente doméstico. Essa pressão acabou resultando em uma crise de identidade em que as mulheres que melhor incoporavam a mística feminina não gostavam de si mesmas.

Desde 1963, o ano de publicação do livro, o estilo de vida das americanas mudou radicalmente. Em um intervalo de 60 anos a proporção de mulheres trabalhando fora de casa dobrou no EUA, saindo de 28% de participação no mercado de trabalho em 1950 para 56,8% em 2016. Além disso, elas não só tem fácil acesso a educação superior como já os superam em número: 56% dos universitários americanos são mulheres. Na política também houve avanços, por exemplo, o Congresso e o Senado americano reúnem 127 representantes femininas na atual legislatura contra apenas 20 em 1962.

É inegável que as mulheres hoje possuem mais direitos e oportunidades e vem conquistando cada vez mais nos Estados Unidos e no resto do mundo. Então de que serve um livro que denuncia a condição de vida da mulher 70 anos atrás? Apesar dos avanços, o que Betty Friedan retrata no livro não desapareceu por completo: ainda tentamos entender o papel da mulher na sociedade e as mulheres ainda buscam construir uma identidade própria que vá além do que se espera delas.

Na nova mística feminina, há mais liberdade de escolha: a mulher pode desde se dedicar exclusivamente ao lar a até exclusivamente a uma carreira, incluindo alguma combinação entre as duas coisas. Contudo, ela também consiste na busca por se tornar uma super-mulher. Uma mulher que mantém uma casa sempre organizada, uma vida saudável, é uma mãe moderna, é ambiciosa na sua carreira, está sempre na moda, faz meditação e engajada politicamente.

Ainda, não importando o caminho escolhido, todas as atividades delas devem ser realizadas em um alto padrão de excelência. Já dos homens, espera-se que tenham carreiras contribuindo com sustento da casa e que ‘ajudem’ nas tarefas domésticas e no cuidado com os filhos, contudo não há cobrança ou busca pela perfeição em todas as esferas da vida.

A Mística Feminina de Betty Friedan mostra não só como vários atores da sociedade reforçaram o papel das mulheres, mas principalmente como as próprias mulheres tinham o poder de perpetuar seu sofrimento ou mudar seu destino. Ao passo que muitas sucumbiam a mística ao ponto de nunca se desenvolverem plenamente, outras retomaram os estudos ou interesses que haviam sido deixados de lado com o casamento. Isto é, algumas mulheres tomaram para si a responsabilidade de superar a frustração e buscar o próprio desenvolvimento.

O livro serve como um lembrete para que a busca feminina por identidade não se torne uma busca pela perfeita adequação a um papel (ou vários). Esse processo passa não só por desenvolver as potencialidades do indivíduo como aponta Friedan, mas também passa pela compreensão das próprias limitações, não super-mulheres não existem fora da ficção. Se a mulher pode ser o que ela quiser, então não deveria haver motivo para tanta autocobrança e culpa quando as expectativas de virar uma super mulher não se realizarem.

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