Recalculando rota

Thiara Cavadas
Futuro da Medicina
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3 min readSep 9, 2015

Acordo cambaleante pelo quarto e ele, ao monitorar meu índice de fadiga mental, pede à máquina de café uma xícara extra forte antes mesmo que eu levante.

As semanas que passaram foram igualmente angustiantes, todo meu ambiente estava mutando para que eu não a encontrasse novamente, na minha mente e fora dela. Nossas fotos das férias nas dunas da Amazônia foram bloqueadas, nossos amigos em comum pararam de ser recomendados como convidados para os jantares que eu organizava, até as refeições que me lembravam dela saíram da memória da minha geladeira. Todo esse cerco emocional foi obviamente criado sutilmente por ele, meu terapeuta pessoal, em frações de segundo, assim que percebeu pela minha expressão que tudo tinha acabado.

Pela minha pulsação, pelas microgotículas de suor que eu expelia e até mesmo pelo tamanho das minhas pupilas, ele entendia os hábitos que me induziam a pensar no assunto. E um por um, sorrateiramente, esses gatilhos foram retirados e não seriam introduzidos novamente no meu mundo até que eu conseguisse lembrar dela como uma daquelas memórias boas, como àquelas de infância, das quais se tem saudade mas não perturbam o sono.

Saio de casa com antecedência para encontrar um coworking qualquer para passar o dia trabalhando. Meu assistente escolhe um lugar novo, 2km da onde estou, ele me motiva falando que é um ótimo dia para uma caminhada e tenho tempo de sobra para chegar. O caminho traçado aparece como uma faixa de luz desenhada na rua que só eu posso ver, é reto e parece plano, aceito a sugestão e decido seguir.

Alguns quarteirões depois ele diz “Você tem tempo de passar em outro lugar para mais um café”. Esse negócio costumava me conhecer melhor, dois cafés antes das 10 da manhã? Assim que eu recuso ele ressoa novamente “Seu cereal está quase acabando, você quer desviar 250 metros para buscar mais?”. Ok isso é estranho, a última vez que fui a um mercado eu tinha 3 anos de idade, só pessoas nostalgicas vão a esses museus para fazer compras. E a insistência continua, três, quatro, cinco vezes, até que ele simplesmente para com as sugestões e fala apenas “recalculando rota” a cada passo que dou. Estou prestes a mandar uma reclamação para a central sobre o comportamento do meu assistente e então a vejo, do outro lado da rua.

Recalculando rota.

Crônica escrita para o portal Futuro da Medicina da OneHealth em parceria com a Envisioning.

Ilustrações: Denis Freiras

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Thiara Cavadas
Futuro da Medicina

Futurist and tech expert. Founder and developer of Futurekit and head of research at Envisioning.io