Caso Uber na Suprema Corte do Reino Unido
Possíveis repercussões no cenário brasileiro
Por Bruno Ett Bicego e Gabriela Marcassa Thomaz de Aquino
Em 19 de fevereiro de 2021, a Suprema Corte do Reino Unido proferiu uma decisão emblemática que reconheceu os reclamantes Yaseen Aslam e James Ferrar, motoristas da Uber, como workers, categoria intermediária existente no sistema trabalhista inglês. Após essa decisão, muito se comentou sobre os seus possíveis impactos no Brasil.
Repercussão e opiniões no debate brasileiro
A repercussão da decisão da Suprema Corte do Reino Unido no Brasil foi bastante ampla. Em um mapeamento realizado nas semanas seguintes à publicação da sentença, identificamos diversos atores se posicionando sobre o tema. Destacamos alguns que consideramos relevantes para a reflexão.
Sobre o impacto da decisão britânica nos Tribunais brasileiros, José Dari Krein, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT), avalia que as perspectivas de a decisão ter uma influência concreta no cenário nacional são muito baixas, já que a discussão sobre a natureza da relação jurídica estaria mais relacionada a uma “disputa narrativa”.
Em artigo escrito à Carta Capital, Renan Kalil, Procurador do Trabalho, ressalta o fato de o Ministro Guilherme Caputo (TST) afirmar que a decisão britânica não deve interferir no debate brasileiro, visto que são sistemas jurídicos distintos[1]. Para Kalil, tal argumentação é insuficiente, pois, apesar da distinção entre os dois regimes jurídicos, a Uber adota regras globais de funcionamento. Por esse motivo, a discussão sobre subordinação na decisão não estaria restrita à legislação do Reino Unido, sendo oportuno para o cenário brasileiro olhar para as ponderações feitas.
Outro ponto evidenciado no debate é o fato de não existir uma via intermediária no Brasil equivalente ou, ao menos, semelhante à categoria britânica worker. Em artigo escrito ao Estadão, Nelson Mannrich, professor titular de Direito do Trabalho da USP, e Alessandra Barichello Boskovic, pesquisadora do GETRAB-USP, escrevem que para enquadrar os trabalhadores de plataformas digitais é preciso considerar novos modelos que fujam da antiga lógica empregado/autônomo, sendo urgente a criação de uma “solução adequada e nova” que ofereça proteção social aos trabalhadores e segurança jurídica aos atores do mercado.
Rodrigo Carelli, Procurador do Trabalho, em artigo escrito ao Trab21, e José Eduardo Resende Chaves Júnior, Desembargador aposentado do TRT-MG, em webinar realizado pela OAB/SP, por sua vez, chamam atenção para o fato de a decisão da Corte britânica ter deixado brechas para a caracterização do próprio vínculo de emprego. Na visão de ambos, a Suprema Corte decidiu pelo enquadramento na categoria worker, visto que esse foi o pedido feito pela parte. No entanto, os argumentos da decisão já seriam suficientes para a formação do vínculo empregatício.
Por fim, vale dizer que a repercussão da decisão britânica também alcançou o Congresso Nacional. Em um projeto de lei apresentado em abril de 2021 (PL. n° 1603/21), o qual pretende classificar como intermitente o contrato entre trabalhadores e plataformas digitais, a Senadora Rose de Freitas (MDB/ES) utiliza a decisão do Reino Unido como elemento na justificativa para a propositura do novo projeto.
Jurisprudência do TST e a decisão da Suprema Corte do Reino Unido
Conforme examinamos em nosso Briefing Temático #5- Análise da decisão do Reino Unido contra a Uber e suas repercussões, os principais argumentos da decisão pautavam-se em aspectos organizacionais da Uber, sobretudo aqueles relacionados ao controle exercido pela empresa nos seguimentos: pagamento, aceite da prestação de serviços (controle nas informações fornecidas e monitoramento da taxa de aceitação/cancelamento), avaliação e comunicação.
Como essa argumentação identificada na decisão da Suprema Corte do Reino Unido trata do sistema organizacional da Uber, ela poderia ser transposta para outros ordenamentos jurídicos. No entanto, eventual aplicação necessitaria adaptar-se ao modelo trabalhista vigente no país.
No Brasil, a categoria intermediária (worker) não existe, de modo que a discussão principal por aqui abarca o reconhecimento ou não do vínculo empregatício entre motoristas e entregadores e plataformas digitais. Até a presente data, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) manifestou-se duas vezes acerca dessa discussão (em sede de Recurso de Revista-RR), a primeira no âmbito do RR nº 1000123–89.2017.5.02.0038 e o segundo no âmbito do RR nº 10555–54.2019.5.03.0179.
Cabe mencionar ainda o RR nº 100353–02.2017.5.01.0066. O julgamento não foi finalizado, porque os outros dois ministros que compõem a turma- Alexandre de Souza Agra Belmonte e Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira- pediram vista após o Ministro Mauricio Godinho Delgado (relator) apresentar voto pela configuração de vínculo empregatício entre motorista e a Uber.
Quanto aos julgamentos finalizados, o Recurso de Revista nº 1000123–89.2017.5.02.0038 foi julgado pela Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), turma composta pelo Ministro Breno Medeiros (relator), Ministro Douglas Alencar Rodrigues e Desembargador Convocado João Pedro Silvestrin, que reformou unanimemente a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região que havia considerado a existência de vínculo empregatício entre o motorista e a Uber.
Em sua argumentação, o Ministro Breno Medeiros considerou a inexistência de subordinação, identificando, no depoimento pessoal do reclamante, a confissão quanto à autonomia na prestação de serviços. Segundo o Ministro, a possibilidade de o reclamante permanecer “off line”, sem delimitação de tempo, traduziria a sua ampla flexibilidade de determinar rotina de trabalho, horários, locais de atuação e quantidade de clientes que deseja atender em um dia. Essa autonomia, na visão do relator, seria incompatível com a subordinação prevista no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Percebe-se, portanto, nesta primeira argumentação, que ao contrário da decisão do Reino Unido, que considerou haver controle da Uber no que diz respeito ao aceite da prestação de serviços, controle tanto das informações fornecidas ao motorista quanto no monitoramento da taxa de aceitação/cancelamento de corridas (com eventual desligamento do prestador de serviços), no Brasil, a partir desta decisão proferida pelo TST, este controle não foi reconhecido. No cenário brasileiro, foi afirmada a autonomia dos motoristas. Assim, mesmo se tratando de aspectos organizacionais da empresa, a argumentação de controle foi analisada de forma muito diversa nesses dois ordenamentos.
Outro ponto destacado na decisão do TST foi o sistema de avaliação dos motoristas, ponto também analisado na decisão da Suprema Corte do Reino Unido. Diferentemente da Suprema Corte, a Quinta Turma do TST entendeu que o sistema de avaliação não tangencia a presença de subordinação, sendo apenas uma ferramenta de feedback para os usuários finais quanto à qualidade da prestação de serviços do condutor. Considerou ainda que o sistema de avaliação, mesmo promovendo o descredenciamento do motorista mal avaliado, é uma forma de permitir a permanência da empresa no mercado e é um interesse da coletividade, resultando na confiabilidade no serviço.
A segunda decisão proferida pelo TST, no âmbito do Recurso de Revista nº 10555–54.2019.5.03.0179, se deu em julgamento conduzido pela Quarta Turma, composta pelo Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho (relator), Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos e Ministro Alexandre Luiz Ramos. Nesta decisão a Turma confirmou, de forma unânime, a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região que havia negado a existência de vínculo empregatício entre motorista e Uber.
Os dois aspectos centrais da decisão versam sobre habitualidade e subordinação, tendo em vista que o relator considerou não haver maiores discussões sobre outros elementos do art. 3º, CLT- pessoa física, pessoalidade e onerosidade — nos trabalhos desenvolvidos em plataformas digitais.
Em relação à habitualidade, a Quarta Turma considerou que é um requisito que fica mitigado, tendo em vista a inexistência de obrigação de uma frequência predeterminada ou mínima para o trabalho. Além disso, também foi mencionado que cabe ao trabalhador definir os dias e a constância em que irá trabalhar. Ressaltou-se que a habitualidade não seria um atributo exclusivo da relação de emprego, de modo que não é um fator determinante para se reconhecer tal relação.
Quanto a subordinação, considerou-se haver ampla autonomia do trabalhador em escolher os dias, horários e forma de labor, bem como haver autonomia de escolher desligar o aplicativo a qualquer tempo, sem vinculação de metas determinadas pela Uber ou sanções decorrentes desta escolha. O acórdão ainda destaca que as obrigações decorrentes de cláusulas contratuais (valores a serem cobrados, código de conduta, instruções de comportamento, avaliação do motorista pelos clientes) não se confundem com o poder diretivo do empregador, tendo em vista que essas obrigações não caracterizam ingerência no modo de trabalho, sendo apenas ferramenta apta a preservar a confiabilidade do aplicativo no mercado concorrencial.
Outro fator destacado na decisão diz respeito ao Microempreendedor Individual (MEI). Segundo a Quarta Turma, o fato de os motoristas de aplicativos poderem fazer a inscrição sob esse sistema seria uma confirmação da tese de existência de autonomia nesta atividade.
A Quarta Turma ainda analisou o conceito de subordinação estrutural[2], dispondo que tal conceito não estaria abarcado na legislação trabalhista (arts. 2º e 3º, CLT), não cabendo ao Judiciário ampliar os conceitos jurídicos. Em outro aspecto, a decisão menciona que, mesmo que o conceito de subordinação estrutural fosse aplicado no Brasil, não alcançaria o caso analisado, tendo em vista que a Uber se presta a realizar a conexão entre condutores e passageiros, sendo o serviço prestado pelos motoristas uma competência assumida pelo profissional e apenas uma consequência inerente ao que se propõe o dispositivo.
Percebe-se nesta segunda decisão que aspectos relacionados ao pagamento e à avaliação não constituíram elemento suficientemente apto a caracterizar subordinação, no entendimento da Quarta Turma do TST. Essa interpretação é contrária aquela encontrada na decisão britânica que considerou que ambos os aspectos são característicos do controle exercido pela empresa.
Por fim, ambas as decisões também tratam da porcentagem repassada pela empresa Uber aos seus motoristas. Nas duas decisões houve o entendimento de que esses valores (entre 75% e 80%) são superiores ao parâmetro admitido pelo Tribunal como suficiente para caracterizar a relação de parceria, assim, as altas alíquotas não seriam condizentes com o liame empregatício.
Percebe-se, dessa forma, que mesmo que argumentação Suprema Corte do Reino Unido tenha se pautado, em grande parte, em aspectos organizacionais da Uber, a transposição dessa argumentação para outros ordenamentos jurídicos não é imediata e simples, podendo, inclusive, resultar em interpretações diversas, como nesses dois casos analisados.
Considerando que os argumentos analisados pelo Tribunal Superior do Trabalho estavam em consonância com aqueles examinados pela Suprema Corte do Reino Unido, não nos parece que a decisão britânica tenha um impacto direto e imediato no sistema jurídico brasileiro. Por outro lado, eventual impacto desta decisão na interpretação dos magistrados é uma dimensão que ainda não pode ser valorada. Só o tempo dirá.
[1] O Ministro Guilherme Caputo fez tal afirmação no julgamento do Recurso de Revista nº 10555–54.2019.5.03.0179, analisado neste trabalho.
[2] “A subordinação estrutural desponta da inserção do obreiro na organização e no modus operandi de seu tomador de serviços, incorporando sua cultura e diretrizes, independentemente das funções específicas que exerça.” (DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 18ª ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 398)
Este artigo foi escrito por:
*Gabriela Marcassa Thomaz de Aquino — Doutoranda e Mestra em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharela em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista- Júlio de Mesquita Filho. Foi bolsista de Mestrado e Iniciação Científica junto a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: gabriela.aquino@fgv.br.
*Bruno Ett Bícego — Pesquisador no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP. Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC-SP. Formado pela Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público — SBDP. Contato: bruno.bicego@fgv.br
Este texto é resultado da pesquisa Futuro do Trabalho & Gig Economy, conduzida pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP. A versão final contou com comentários de toda equipe: Ana Carolina R. D. Silveira, Ana Paula Camelo, Arthur Bispo, Guilherme Klafke e Olívia Pasqualeto.
Como citar este artigo:
AQUINO, Gabriela M. T.; BÍCEGO, Bruno Ett.. Caso Uber na Suprema Corte do reino Unido: possíveis repercussões no cenário brasileiro, 15 de maio de 2021. Disponível em:_______________. Acesso em: mai. 2021.
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