Traficassete

João Vítor Miguel
Futuros de Curitiba
3 min readOct 27, 2016

Memórias póstumas de uma fita cassete descartável

Eu sabia que o meu dia eventualmente chegaria. Após 2 semanas na prateleira da loja, fui escolhida. E, assim como com todas as outras antes de mim, aquele seria o melhor, porém último, dia da minha vida. O que fazia sentido, porque eu só funcionaria uma vez. Não sei como se chamava o rapaz que me escolheu, mas sei que aquela não era a sua primeira vez. Ele era apaixonado por música, e já tinha passado por várias outras fitas antes de mim.

Não demorou muito para eu começar a trabalhar. Logo após sair da loja, meu novo dono me tirou do plástico e me colocou pra dentro do rádio do seu fusca. Era praquilo que eu tinha sido feito. Esse era o meu propósito, e a sensação era inigualável!

Já era noite quando toquei minha última música. Seu tom triste simbolizava a sensação de melancolia que me invadia por saber que a minha vida logo chegaria ao fim. Quando terminei, meu dono me ejetou do rádio do fusca, e só então eu percebi que já tínhamos chegado ao seu prédio.

Em um breve momento de despedida, ele me jogou no latão de lixo da garagem e, pela fresta que ficou na tampa semi-aberta, eu o observei seguir seu rumo em direção ao elevador e de volta para o seu apartamento.

Meu futuro depois daquele latão ainda era incerto pra mim. Mas eu não me importava, pois sabia que nada seria melhor do que aquela tarde. Ali terminaria minha jornada, e eu fui descansar com o sentimento de dever cumprido.

Acordei de manhã num susto, quando alguma coisa bateu contra mim. Não demorei muito pra assimilar que estava dentro de um carro, e junto comigo, dentro de uma sacola, estavam outras iguais à mim. Várias outras, umas 30 talvez. Aquele não era o mesmo carro que eu havia conhecido no dia anterior, e o homem que o dirigia também não era o mesmo que havia me comprado.

Em alguns minutos, o carro parou. O motorista, levando a sacola em que eu estava, desceu do carro e caminhou até uma casa em cuja porta bateu. Uma mulher atendeu, e, quando ela abriu a porta, deu pra ver lá dentro. No centro da sala, sobre uma mesa de madeira, eu vi muitas outras iguais à mim. Algumas inteiras, outras abertas e aos pedaços. Pedaços que eu já conhecia, pois foi deles que eu fui feita antes de ir pra loja. Ah, eu sabia exatamente o que estava prestes a acontecer.

As alterações que eles fizeram em mim foram algo que eu nunca tinha visto antes. Mas o importante mesmo era que eu estava funcionando novamente. Eu tinha uma nova vida. Um novo propósito.

Já faziam 3 dias que eu estava tocando sem parar no rádio. A manhã estava tranquila, até que alguém bateu com força na porta. Uma voz lá de fora disse “polícia!”, e todo mundo dentro de casa entrou em desespero. Eles juntavam todas as fitas que conseguiam encontrar, enfiavam numa sacola e escondiam em algum lugar. Mas antes que conseguissem pegar todas, a porta abriu num estrondo e 3 policiais entraram. Dois deles mandaram todo mundo pro chão, enquanto o outro veio direto em direção ao rádio em que eu estava tocando. Ele olhou pro rádio por um momento, estudando como faria pra me tirar dali, e então apertou um botão que me forçou a parar de tocar. Em poucos segundos, eu estava no chão, e um pé me esmagou.

Foi ali que a minha jornada acabou de verdade. Aquele policial me quebrou em tantos pedaços diferentes que não haveria qualquer esperança de recuperação. Mas, por incrível que pareça, eu estava satisfeito. Eu já tinha morrido uma vez. Aqueles últimos 3 dias tinham sido um bônus em uma história que deveria ter durado apenas 1. Para uma fita cassete descartável, eu tinha sido muito feliz.

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