Dados abertos para análises amplas das questões de gênero

Gênero e Número
Gênero e Número
Published in
5 min readAug 31, 2017

Giulliana Bianconi *

Quando decidimos produzir na Gênero e Número uma edição sobre violência contra a mulher no Brasil, no final de 2016, entramos em contato com um dos órgãos públicos produtores de dados sobre tipos de violência denunciados por mulheres. A funcionária prontamente se disponibilizou a enviar o balanço anual. Balanço naquele caso queria dizer: o documento que aquele órgão já havia escrito e divulgado, baseado, entre outras coisas, na análise da base de dados que haviam estruturado com todos os dados coletados.

Era suficiente pra gente? Não. Balanços não são suficientes. Eles trazem filtros de toda a sorte. E são, inevitavelmente, uma leitura política feita por aquele órgão. São documentos válidos, claro, para se acessar a narrativa oficial. Mas existe uma imensa diferença entre você acessar um recorte e uma leitura de dados e acessar uma base completa, onde as perguntas e os filtros não estão pré-definidos. Então insistimos. Por meio da Lei de Acesso à Informação, solicitamos as bases à Secretaria de Política para as Mulheres. A Lei, aprovada em 2011, passou a vigorar em 2012, e define o direito de acesso às informações públicas em esferas federais, estaduais e municipais.

Não tivemos vida fácil. A secretaria não conseguiu atender ao nosso pedido a tempo. Com as mudanças estruturais que haviam acontecido por lá — mudança de gestores e reorganização dos ministérios -, estava tudo um tanto bagunçado. Entendemos que poderíamos insistir, mas que talvez não funcionasse. Apesar da Lei, apesar de serem dados públicos, há inúmeros casos de pedidos negados ou não atendidos.

Descobrimos então que, antes da Gênero e Número, alguém já havia feito aquele mesmo pedido, para um outro fim, e conseguido as tais bases. E foi por meio desse cidadão que já havia exercido seu direito de acessar os dados públicos que conseguimos chegar aos números que tanto precisávamos para a reportagem. Eram dados abertos, afinal, e ele, consciente disso, compartilhou conosco as bases.

Navegue pelo interativo que integrou o Especial Violência Anunciada: http://www.generonumero.media/ligue-180-indica-os-tipos-de-violencia-que-elas-sofrem-em-casa-ou-na-rua/

[Este texto integra a série de 1 ano da GN. Leia outros aqui]

A reportagem saiu. As estatísticas de denúncias de violência contra a mulher, por tipo e por ano, puderam ser visualizadas para além do balanço oficial do órgão. Havia limitações? Sim. Uma base não pode responder o que ela contempla. Aquela base que conseguimos obter não trazia, por exemplo, dados de faixa etária. Mas, vale frisar, já tínhamos na reportagem bem mais do que o tal balanço nos oferecia.

Fazer jornalismo de dados é trabalhar com análise de cenários. No caso, com análise de dados. Algumas bases podem representar cenários muito amplos, uma imensidão. Outras, podem se resumir a uma coluna de Excel. Mas não trabalhar com dados é reduzir as possibilidades de percepção, de análise e de leitura. E definitivamente não é disso que precisamos para olhar para as questões de gênero no Brasil, com todos os recortes de raça e classe dos quais não se pode prescindir.

Dados, dados, dados… e a sensibilidade para a notícia

Havia uma interrogação na Gênero e Número há um ano, quando lançamos nossa primeira edição: que nível de jornalismo de dados a gente conseguiria fazer? Assim como no jornalismo investigativo, há muitos níveis possíveis — e investigar com base em dados pode render uma apuração das mais aprofundadas.

Nossas referências eram, entre outras, o trabalho que o Estadão Dados desenvolvia, a plataforma digital norte-americana FiveThirtyEight e projetos como o NarcoData — do site mexicano Animal Político. Como inspiração, também olhávamos, como inspiração, a impressionante produção realizada em veículos como The New York Times e Guardian.

No dia a dia, ao longo deste um ano, o que vimos foi que a equipe precisa estar bem equilibrada entre o trabalho de levantamento/análise dados e todo o restante que diz respeito à produção do conteúdo, principalmente para cumprir a periodicidade mensal — e depois bimestral — em que nos propusemos a publicar as edições. Se não há um fluxo bem definido, o jornalismo de dados trava. Afinal, você não vai buscar todos os entrevistáveis da matéria antes de entender, muito bem, o que dizem os dados sobre um determinado assunto. E só vai entender o que os dados dizem se estiver com a planilha redonda, pronta para, de fato, ser analisada. É possível que uma pessoa percorra o caminho do começo ao fim? Sim, mas não é isso que estabelecemos por aqui como processo ideal. Entendemos que as expertises se complementam.

Voltando à pergunta: que nível de jornalismo de dados conseguiríamos produzir? Isso dependeria ainda de outros elementos: da qualidade das bases que a gente conseguisse acessar (o que depende, diretamente, de uma cultura de abertura e transparência) e da expertise que a gente tivesse na própria equipe para trabalhar esses dados. Cruzamentos de bases, técnicas de análises quantitativas, manuseio de softwares e linguagens de programação que possam ajudar nas análises. Tudo isso depende mesmo do conhecimento que a equipe tem. Depois dessa etapa, entram outras expertises que não são menos importantes para uma iniciativa como a Gênero e Número, como produzir material audiovisual e visualizações gráficas interativas.

Reportagens de dados x Equipe

Na Gênero e Número, o primeiro ano foi de produção de reportagens de dados, a todo o momento. Mostramos, por exemplo, qual é o poder mais desigual em termos de representatividade e qual o espaço que as mulheres ocupam nas Forças Armadas Brasileiras, denunciamos a porcentagem de candidaturas fantasmas e alertamos sobre a subrepresentatividade das mulheres negras no protagonismo do cinema brasileiro.

Mas foi um ano também de entender qual equipe, de fato, a gente precisava, e como poderíamos atender ao nosso fluxo de levantamento de dados/tratamento de dados/produção de conteúdo/diversificação dos formatos de distribuição/publicação e distribuição do conteúdo sem que ninguém fosse sobrecarregado com o envolvimento em mais etapas do que consegue e deve cumprir. Vamos ao ano II ainda em ritmo de testes, mas já com a perspectiva de um fluxo mais organizado e que nos permita produzir mais, com a mesma qualidade. E, por que não, projetar apurações mais sofisticadas e ambiciosas para um jornalismo de dados e de gênero que possa ser referência na América Latina?

  • Giulliana Bianconi é jornalista e codiretora da Gênero e Número
  • [APOIE A GÊNERO E NÚMERO: Acesse, saiba mais e colabore]

--

--

Gênero e Número
Gênero e Número

Iniciativa independente de jornalismo de dados com foco em gênero