De projeto a organização: como a Gênero e Número cruzou a fronteira

Gênero e Número
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6 min readAug 31, 2017

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Giulliana Bianconi *

Produzir conteúdo jornalístico com periodicidade é coisa bem diferente de colocar de pé uma organização de jornalismo.

O que significa, afinal, sair pra rua sem ter processos de produção, de gestão e nem visão de futuro bem estruturados?

Na Gênero e Número, onde optamos por sair com o bloco na rua e ir arrumando a casa, posso compartilhar aqui que nos sobrava entusiasmo. O que nos movia era muito genuíno: um enorme desejo de fazer jornalismo de excelência. A proposta, desde o início, era clara: produzir conteúdo que não fosse caracterizado como ativista, mas pudesse, sim, contribuir para o debate sobre assimetrias entre gêneros. Entendíamos que existia esse espaço possível.

Vale pontuar que o projeto já nasceu numa situação privilegiada se comparado a tantas outras iniciativas de mídia independente. Quando apresentamos a nossa proposta para a Fundação Ford, naquele final de 2015, tínhamos um projeto bem redondo. Nós três, jornalistas com trajetórias diversas, já tínhamos explorado diferentes áreas da comunicação e estávamos ali na tentativa de aportar o que melhor cada uma tinha aprendido a fazer. A Fundação Ford apostou e nos garantiu orçamento para um primeiro ano de execução. Comemoramos. Além do apoio financeiro, a gente se credenciava numa rede relevante: a de projetos apoiados por uma organização internacional que valoriza e apoia a mídia independente em grande parte do mundo.

[Este texto integra a série de 1 ano da GN. Leia outros aqui]

Antes mesmo de a Gênero e Número ser lançada, a gente já entendia o que era integrar essa rede: como Gênero e Número, fui convidada a participar de um evento de inovação no jornalismo promovido na Argentina, onde encontrei boa parte dos veículos que estavam realmente fazendo a diferença nessa cena na América Latina. Legitimidade, construção de rede. Tudo isso era muito importante naquele momento — e segue sendo até hoje. Mas e a governança? E os processos? E nosso plano de médio prazo? Ainda levariam bastante tempo — e algumas tormentas — para chegar.

A Gênero e Número nas ruas, apertem os cintos

Foi num mês de agosto que vimos a revista digital começar a circular. Uma edição sobre questões de gênero no Esporte no mês em que eram realizados os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Em 10 dias, a gente estava em lugares tão diversos que não conseguíamos ver como a largada poderia ter sido melhor: BBC, coluna do Juca Kfouri, Agência Pública (onde ficaríamos incubadas por 10 meses), El País e centenas de páginas em redes sociais que repercutiam nossos conteúdos. Havia também um grande entusiasmo de um público que reconhecia a relevância daquele trabalho. Os dados que levantamos, tratamos e contextualizamos em conteúdos haviam entrado no debate. A gente tinha então começado bem.

Navegue pelo interativo sobre representatividade feminina nas Olimpíadas: http://generonumero.media/interativos/mulheres-nos-jogos-olimpicos/

Éramos, desde o início, jornalismo de dados com foco em gênero. Com visualização interativa, com reportagens, com peças gráficas, com números e contexto. Queríamos fazer mais. Eventos? Sim. Publicações diversas? Também. Mas não seria tão trivial. Jornalismo de dados é trabalhoso. Existe o prazo para acesso aos dados, para tratamento e análises. Éramos quatro pessoas fixas e mais alguns ótimos colaboradores e colaboradoras externos. Mesmo assim, claramente o conteúdo e a gestão nos desafiavam um ritmo intenso.

Mais uma vez: cadê o tempo para estruturar e definir melhor os processos? E nosso planejamento a médio prazo? Seguimos com os cintos apertados. Uma edição por mês até a quarta edição. Quando encerramos o ciclo de 2016, tínhamos um orgulho danado do que havíamos feito e a clareza de que era imperioso organizar a casa para conseguirmos sair do status projeto — com demandas sempre urgentes — e avançarmos para um modelo que contemplasse mais planejamento e execução. Dessa forma, avançaríamos em processos contínuos importantes para nos enxergarmos, entendermos o que precisávamos ajustar e, a partir dai, mapearmos passos que nos permitiriam ir além de onde estávamos.

Qual a diferença entre um projeto e uma organização, afinal?

Mesmo que eu tenha dado o start naquela ideia de criar um projeto que reunisse jornalismo de dados e gênero, nunca enxerguei a necessidade de uma estrutura hierarquizada. Ao reunir pessoas que pareciam se complementar de forma bem interessante para tocarem juntas o escopo daquele projeto, entendia que o melhor caminho seria mesmo uma construção coletiva. Com esse formato foi bem aceito pelas outras diretoras, dividimos as áreas e fomos em frente.

Aos poucos, porém, entendemos que isso não bastava, pois não garantia uma estabilidade ou uma gestão resolvida. O que a Gênero e Número exigia da gente em termos de engajamento, de dedicação, de concordância sobre o tipo de atuação institucional que deveríamos ter, de visão de futuro até, para avançar como organização sólida, consistente?

Na busca por entender isso, conversamos com pessoas experientes — jornalistas, diretores(as) de organizações — e ficou evidente que aquele impasse sobre como seguir não era incomum, tampouco exclusividade nossa. Havia muitos outros casos semelhantes em organizações menores ou maiores do que aquela que buscávamos ser. Colocar uma organização de pé, numa gestão compartilhada, definitivamente não é algo trivial.

Nesse processo de evoluir de projeto para organização, e fazê-lo de forma horizontal, acredito que todo mundo aprendeu muito na Gênero e Número, com direito a várias tormentas no caminho.

Entre as reflexões que dizem respeito a esse amadurecimento institucional, digo que me convenci de que esse salto só acontece quando as pessoas que deliberam sobre uma iniciativa concordam confortavelmente sobre o que ela é, sobre como devem funcionar as estruturas existentes (sejam áreas, sejam núcleos, sejam pessoas em postos específicos) e quando, finalmente, essas áreas funcionam de forma a possibilitar à diretoria ter uma visão de futuro comum ancorada na construção presente, e não apenas a executar um determinado projeto em andamento.

Pode soar simples, mas é bastante coisa para alinhar e estruturar. Talvez seja necessário contar com consultorias que tragam inputs externos, que compartilhem provocações, referências. Mediações devem ser bem-vindas. A gente contou com um processo intenso na Casa Pública, liderado pela jornalista Natália Viana, e a troca constante nos foi muito útil.

Equipe Gênero e Número esteve incubada pordez meses na Casa Pública, no Rio

Voltando ao ponto inicial, a importância de se ter bastante consciência dessa diferença (colocar um projeto robusto na rua versus fomentar uma instituição de fato) significa, inclusive, entender que há espaço para as duas coisas. Um projeto de jornalismo relevante pode ter um imenso valor, pode ser extremamente impactante e pode, inclusive, deixar sua marca na história, mas um projeto de jornalismo não é uma organização, absolutamente. Por aqui na Gênero e Número, sabíamos disso. Mas entendemos, na prática, que começar sendo projeto mirando amadurecer para ser organização exige muita construção cotidiana que não pode, nem por um dia, ser ignorada. E exige também expertises que vão além das que um bom profissional que planeja, gerencia ou executa conteúdo carrega.

Agora, no nosso Ano II, miramos na sustentabilidade dessa organização, com uma agenda de consultorias externas previstas, com maior aprendizado sobre diversas questões de gestão que já enfrentamos nesse um ano de execução. E com a certeza ainda maior de que o que nos propomos a fazer é relevante e precisa ter vida longa. Como organização.

  • *Giulliana Bianconi é jornalista e codiretora da Gênero e Número
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Iniciativa independente de jornalismo de dados com foco em gênero