Por que a bandeira Gênero e Número está no campo da mídia e não do ativismo

Gênero e Número
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5 min readAug 31, 2017

Giulliana Bianconi *

Não são tempos fáceis nem para a mídia nem para a audiência que consome informação. Para a primeira, há um ambiente fluido, com fronteiras porosas entre quem produz e quem consome informação. Há também uma crise de modelo de negócio que desafia as organizações de mídia — principalmente as que fazem jornalismo — a se reinventarem diante do onipresente digital. Para o público, existe a necessidade de saber lidar com tantas possibilidades de acessar informação e filtrar o que é do seu interesse, sem perder de vista que é preciso se esforçar para não ter o acesso à informação moldada apenas pelos algoritmos da internet.

Nesse contexto, as iniciativas jornalísticas de nicho ganharam espaço. São aquelas que se dedicam a um tema ou a uma área específica, e buscam ser referência para o debate. Elas não são novidade, mas são uma tendência. No Brasil, alguns exemplos recentes de organização que buscam se estabelecer com esse posicionamento são o Jota, que produz conteúdo com foco na cobertura do mundo jurídico, o Poder 360, que cobre exclusivamente política, e a própria Gênero e Número, com nosso foco em questões de gênero.

[Este texto integra a série de 1 ano da GN. Leia outros aqui]

Por aqui na GN temos uma camada a mais para trabalhar nosso posicionamento como veículo e organização de nicho: somos iniciativa que aborda um tema que também é “causa”, a equidade de gênero. Então é fácil que nos deem o selo de ativistas. Mas não é dessa forma que nos definimos. E por que não?

Por entendemos que nossa contribuição principal não deve ser reivindicar direitos nas plataformas e nas ações que lideramos, mas sim contribuir para qualificar debates que já estão a pleno vapor e iniciar outros importantes que ainda não vieram à tona por falta de argumentos sólidos — que procuramos trazer com os dados.

Com suporte dos dados é possível revelar e mensurar, com profundidade e precisão, desigualdades de gênero, indo além dos debates declaratórios. Não que a realidade nua e crua não nos traga profundidade. Mas reportagens de qualidade que se apoiam no jornalismo de dados têm o mérito de ir além de um fato, ou de uma porção de fatos. Revelam cenários.

Jornalismo de nicho é jornalismo

Não é um jornalismo por total imparcial? Nenhum jornalismo o é. A escolha das pautas ou a escolha das fontes a serem entrevistadas trazem junto, sempre, um posicionamento, que pode ou não ser informado com transparência pelo veículo. Aqui na Gênero e Número temos como orientação priorizar pautas que debatam direitos. Isso é uma orientação editorial. E nada tem nada a ver com comprometer a verdade dos fatos, muito menos se opor a revelar informações que possam ser relevantes para a compreensão de determinado contexto pelo leitor, como veículos partidarizados não raramente o fazem. O que nós fazemos é jornalismo, independentemente de o foco ser apenas em gênero.

Temos o que, afinal, de tão diferente dos veículos tradicionais? Mesmo daqueles também comprometidos com o debate de direitos? Há aspectos nos diferenciam, sem dúvida. Alguns perceptíveis a olho nu, como uma estrutura física ancorada no digital, que não depende de espaços industriais. Outros mais subjetivos, como a forma de buscar nossa legimitidade, que para nós não está garantida na tradição do fazer jornalístico, e sim numa construção diária, que envolve reconhecimento a nossa expertise em dados e em gênero.

Um ponto a ser destacado entre essas diferenças é o nosso empenho em não reproduzir nem validar a aura de superioridade que ainda acompanha o jornalismo em tantos espaços onde se produz notícia.

A informação de interesse público, sendo produto gratuito ou pago, deve ser produzida conectada com o contexto, com o maior vínculo possível com a realidade e numa perspectiva de diversidade e abertura. Não é um caderno de fontes com doutorado somado a anos de dedicação a um tema (ou editoria) que necessariamente resolvem uma cobertura. Mas ainda há espaços “tradicionais” produzindo nessa lógica, que deliberadamente — ou não — optam pode se manterem distantes de lugares e de fontes relevantes para narrativas de contextos, como se a presença/ausência de vozes legítimas fosse algo que não afetasse a produção desse serviço que vai ser entregue ao público.

Mas por que não jornalismo feminista?

Existem várias possibilidades quase sempre. Mais de uma delas pode ser mostrar ótima. Mas existem também escolhas. Posicionamento. E isso tem razão de ser. Estar num dos polos do debate, seja ele qual for, vai limitar algumas tantas possibilidades e ampliar outras. Se decidíssemos por ser organização ativista, faríamos parte, como organização, da engrenagem de um movimento potente que é o feminista. Poderíamos contribuir também dessa forma com a democracia. Mas não é nesse lugar que decidimos colocar a Gênero e Número.

Entendemos, no momento em que planejamos essa iniciativa de mídia, que o jornalismo em geral carece de uma abordagem bem consistente e apurada quando fala sobre gênero. São poucos os veículos que tratam do tema com domínio.

Engajar-se na produção de um jornalismo feito com dados que cumpra seu papel de informar da melhor forma nesse campo é também um outro movimento importante: o dos dados abertos. Perseguir esses dados, reclamando pela abertura deles; apostar em pautas que não se esgotam em apenas uma história — mas que escancaram contextos de assimetrias, de abusos; apresentar os dados de forma que o leitor(a) possa explorá-los facilmente e até reutilizá-los. Nesse movimento, queremos abrir bases e ouvir diferentes vozes, sejam elas ativistas, conservadoras ou moderadas.

Então queremos dialogar com o movimento social, com as mulheres feministas, mas também com governos, com o mercado. Dialogar com interlocutores de diferentes posições políticas, partindo sempre de algumas premissas básicas:

1) a equidade de gênero é imprescindível para uma democracia plena
2) não vamos fomentar polarizações políticas
3) não é nosso papel na Gênero e Número abrir espaço para fontes/entrevistado(as) que não estejam dispostos(as) a um verdadeiro debate democrático — contra a conquista de direitos iguais, considerando, inclusive, as assimetrias que se colocam quando debatemos sob a perspectiva de raça e classe, além de gênero.

Isso não nos impede de termos reconhecimento de grupos e iniciativas feministas, como pudemos ver no fim de 2016, ao sermos lembradas na lista de Mulheres Inspiradoras da Think Olga, uma menção que nos orgulha demais. Entendemos que dialogamos diretamente com essas mulheres que dedicam suas vidas a construir uma sociedade muito mais justa.

O lugar onde estamos, e onde decidimos construir a Gênero e Número, é um lugar de diálogo e transparência. É nicho, mas não é polo.

  • *Giulliana Bianconi é jornalista e codiretora da Gênero e Número
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Iniciativa independente de jornalismo de dados com foco em gênero