Minha primeira vez no carnaval

Gabriela Cecon
GabiCecon
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5 min readOct 7, 2019
Desfile de Escola de Samba de algum carnaval.

Calma. Não é o que alguns de vocês estão pensando. Foi minha primeira vez visitando um barracão de escola de samba. E já vou explicar porque isso foi importante.

Eu cresci num bairro paulistano chamado Casa Verde, na zona norte de São Paulo. Minha casa ficava relativamente próxima do Sambódromo. Dava pra ver as luzes e ao fundo, bem ao fundo, o som das escolas de samba desfilando no carnaval.

Na escola, quando era adolescente, muitos colegas também frequentavam escolas de samba e desfilavam no carnaval.

Eu cresci em lar evangélico e com o agravante em pentecostal. Ou seja… Fui doutrinada a acreditar e propagar que carnaval é a festa do capeta. “O próprio nome já diz, festa da carne, e o diabo age na vida de quem dá lugar para a carne ao invés do espírito.”

Por causa desta minha cultura religiosa, nunca tive sequer curiosidade de saber como funcionava uma escola de samba. E olha que eu morava no centro de pelo menos umas três escolas de samba bem grandes e famosas. Mas não era só o contexto religioso que me mantinha totalmente apartada, mas também o envolvimento do tráfico de drogas com essas escolas. Nós tínhamos conhecimento de traficantes da região e sabíamos que eles eram frequentadores e patrocinadores assíduos do carnaval.

Eu morava ha umas cinco casas de uma boca. Via de perto como isso afetava as pessoas e a comunidade. Sempre tive um certo ranço disso.

Anos depois, quando eu desconstruí totalmente os pensamentos religiosos que me moldaram e comecei a construir os meus próprios pensamentos, que são bem questionadores e céticos, decidi esse ano ir em um bloco de carnaval. Foi muito divertido, mas isso é outra pauta.

Recentemente fui convidada para um evento em um barracão de escola de samba e assistir um desfile de fantasias. Estamos em Outubro, e a escola faz esse evento para que quem for desfilar, possa analisar a fantasia que deseja comprar. É engraçado ter vivido na Casa Verde tantos anos e nunca ter feito isso, e hoje que não moro mais lá ter finalmente me aberto para essa experiência.

Ao chegar lá, senti uma enorme semelhança com a igreja pentecostal na qual fui criada. Pasmem. Mas são semelhanças que percebi por ter nascido na igreja, ou seja, quase ninguém perceberia isso.

Pessoas simples, muito bem vestidas, extremamente receptíveis e simpáticas e um pouco desorganizadas nos receberam. Muito típico de festividades da igreja.

Depois disso, quando entrei no salão, percebi que na verdade “todos” estavam muito bem vestidos. Me senti até um pouco desconfortável com minha roupa. Outro ponto muito parecido com a igreja evangélica, afinal, as pessoas se vestem extremamente bem em festividades religiosas. Então se você já foi convidado para ir em alguma igreja assim, sabe do que estou falando.

O irônico é que assim como na escola de samba, a igreja sempre tem as piriguetes que querem arrasar no look e acabam sendo uma tragédia fashion. Roupas brilhantes e justas com sapatos de imensos e desconfortáveis salto altos. E dá pra saber que são desconfortáveis, pois nenhuma delas consegue andar com uma postura aceitável.

A forma de organização feudal também me lembrou muito a igreja. Existe cargo de tudo dentro desses reinos ficcionais para fazer as pessoas se sentirem importantes. Até regar as plantas se torna um cargo, e ai de quem quiser regar as plantas sem pedir permissão. E a forma que se organizam dá pra perceber claramente quem é plebe, nobreza e realeza.

Mas depois de reparar estas semelhanças bizarras entre a escola de samba e cultos religiosos que frequentei semanalmente durante anos da minha vida eu comecei a entrar num estado de magia. Eu gosto de observar pessoas. Eu vi muitas famílias ali sentadas nas mesas, comendo e dando risada. Isso me fez sentir bem.

Quando o desfile começou eu vi pessoas muito simples totalmente ornamentadas, não apenas com suas fantasias, mas com um brilho no olhar, na alma. Impossível não sorrir vendo alguém tão feliz e com a autoestima tão alta, exalando felicidade.

Algumas fantasias me emocionaram muito. As mulheres pareciam princesas e os homens príncipes. Me senti em um evento da realeza. Fiquei comovida e esqueci por um tempo tudo o que foi construído na minha história sobre escola de samba. Comecei a me perguntar por quê o carnaval não é mais valorizado, por quê não vemos dessa forma na mídia, por quê não vemos histórias com essas pessoas e essa cultura na literatura.

Até que…

Chegou a vez da Rainha de Bateria dar o ar da graça. E ela veio com toda pompa. Estava vestindo uma roupa linda com uma micro saia. Quando a vi pela primeira vez eu me assustei com a grossura das cochas. Não é algo comum de ser ver na rua. Não parece nenhum pouco natural, é como se ela fosse uma mulher bionica. Depois desse impacto, o anfitrião no microfone chamou a bateria e ela começou a sambar. Novamente me sinto impactada, pois… Não esperava ver as partes íntimas de alguém tão facilmente durante uma dança naquela noite. A magia se desfez para essa realidade clichê. Todos estavam olhando apenas para um lugar enquanto ela dançava, e você deve imaginar onde.

Depois comecei a reparar o quão machista é o carnaval. Os cantores eram todos homens, e a maioria das mulheres que mais ganham destaque são as semi-nuas.

A porta-bandeiras tem seu destaque também, e ela não está semi-nua, e é isso que fez minha experiencia não se quebrar totalmente.

Ver a quantidade de penas e plumas utilizadas também quebrou um pouco o encanto. Será que aquelas pessoas concordam com a crueldade que fazem nas aves para ornamentar suas fantasias? Ou preferem se esquecer disso? A felicidade passageira em detrimento do sofrimento animal. Não quero que este post seja ativista, mas não posso deixar de mencionar que quando me lembrei disso fiquei imensamente triste. Faço aqui um apelo para que escolas de samba parem de utilizar penas e plumas animais.

No final do desfile, chamaram todos os modelos que estavam desfilando para a passarela e a escola de samba começou a tocar seu enredo de 2020. Uma chuva resplandecente de papel laminado picado começou a cair enquanto aquele rítmo marcante sincronizava com as batidas do coração. As pessoas cantavam orgulhosas e dançavam honradas em suas fantasias luxuosas. Eu recorto alguns momentos perfeitos nos quais eu congelaria o tempo para minha coleção mental pessoal, e certamente este momento está recortado.

O carnaval está difícil de ser perfeito. Ainda não sinto vontade de desfilar, mesmo tendo essa experiencia extasiante no final. Ainda tenho ideais fortes e não consigo ser conivente com sexismo e crueldade contra animais. Mas pelo menos agora entendo mais sobre nosso povo e nossa gente. Entendo o brilho no olhar dos carnavalescos, e consigo ver o lado bonito, infelizmente ocultado, das escolas de samba.

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Gabriela Cecon
GabiCecon

Especialista em cultura geek, empresária, design thinker e sonhadora.