Era uma vez… como começar?

A necessidade por autenticidade na introdução de um texto e a arte de seduzir o leitor na internet

Gabriel Pardal
FVM : Faça você mesmo
3 min readMay 26, 2023

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Na literatura há inúmeros exemplos de começos marcantes que nos ensinam lições valiosas sobre a importância de começar bem um texto. Abra a primeira página e leia o primeiro parágrafo de “A Metamorfose”, “Anna Karênina”, “Lolita”, “O Estrangeiro”, “O Apanhador no Campo de Centeio”, para citar os clássicos, ou os contemporâneos “Sobre os ossos dos mortos”, “Hotel Mundo”, “A Morte do Pai”, “Escute as feras”, “Bonsai”. São inícios memoráveis e famosos por capturar a atenção e despertar o interesse pela história que se desenrolará.

“Quando­ certa­ manhã­ Gregor­ Samsa­ acordou­ de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama meta­morfoseado num inseto monstruoso.” Esta é a icônica primeira frase do “A Metamorfose”, de Franz Kafka.

A primeira impressão é importante, seja em um encontro, numa apresentação ou até mesmo na escrita. Quando se trata de um texto, o início desempenha um papel crucial em cativar o leitor e estabelecer o tom para o restante da obra.

“Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.” Assim começa “Sobre os ossos dos mortos” de Olga Tokarczuk.

Agora imagine quem escreve na internet, onde vídeos de 15 segundos se tornaram a mídia mais consumida e somos bombardeados por uma infinidade de conteúdos diariamente. Aqui a atenção dos leitores é disputada, por isso é necessário capturar rapidamente o interesse deles. O começo de um texto é fundamental para que a dedicação depositada na sua escrita não seja arrastada pra cima e pra todo o sempre.

Os coachs de criação de conteúdo dizem “quando qualquer parte da escrita é longa, a carga mental cognitiva para continuar é muitas vezes uma batalha que se perde. Não é mais a era dos jornais. Abra forte, vá direto ao ponto, incentive o leitor a continuar lendo.”

Tudo para fisgar a audiência

Errado não está. Ao contrário de um livro, a internet não é comumente um espaço de contemplação. Pelo contrário, a maioria das pessoas está em busca de distração, entretenimento, informação rápida.

Mas há uma linha fina entre a sedução de Kafka e de um artigo que começa assim “Como um sistema de escrita pode te ajudar a ganhar mais leitores.” Ambos querem a mesma coisa. A atenção de quem lê.

Este texto aqui, por exemplo, já está longo para os tempos atuais. Quando eu for divulgá-lo nas redes sociais terei que cortar, deixar as frases mais concisas e diretas. Segundo os coachs, seria melhor ajustá-lo para um tom mais afirmativo de autoajuda. Ao invés de começar citando clássicos da literatura ocidental, eu deveria começar com algo assim: “Escreva um começo forte para prender a atenção do leitor.” As palavras em negrito são comandos que seduzem quem está buscando esse tipo de conteúdo. São como as palavras Compre, Grátis, Promoção, para quem está andando num shopping center.

A internet está cheia de textos assim. Este tom enxuto, agressivo, professoral, se tornou o padrão já faz alguns anos. Me questiono se seguir os guias dos publicitários é a única maneira de ser lido na era digital.

Não parece difícil se você pedir para um ChatGPT criar cinco títulos para um artigo sobre a importância de começar bem um texto:

  1. O Poder do Primeiro Parágrafo
  2. A Arte de Capturar a Atenção
  3. A Primeira Impressão é a que Fica
  4. Despertando o Interesse desde as Primeiras Linhas
  5. Segredo de um Texto Memorável

Mas parece com algo que você já leu por aí, não é?

Acredito que podemos dedicar mais tempo e esforço para criar um início envolvente e menos lugar-comum. O que a IA generativa faz é reproduzir formas de falar, falta a ela empatia e pensamento crítico. Me preocupa se todos passarmos a escrever dessa forma. Como equilibrar a necessidade de capturar a atenção do leitor rapidamente com a busca por originalidade na escrita?

Ter um começo impactante é fundamental, porém, envolve criatividade, imaginação, experimentos. Um robô jamais pensaria numa primeira frase como Tólstoi em “Anna Karênina”: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

Para isso é preciso observação e sensibilidade. Duas coisas que passam despercebidas no enxame de gigabytes que circulam no engarrafamento da web.

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Gabriel Pardal
FVM : Faça você mesmo

Artista. Escreve sobre processos criativos, inspiração e criatividade nos dias de hoje. https://www.gabrielpardal.com/