Gutenberg, minha letra não é assim tão feia.

João Henrique Riboli
Gafanhotos e Mafagafos
6 min readAug 3, 2020
Periodic Table of Typefaces — Cam Wilde, versão em portugês.

Quando nascemos precisamos aprender muitas coisas, como andar, falar, comer e se comportar e quando estamos evoluídos satisfatoriamente (nem tanto na verdade) para interagir em sociedade, nossos pais nos jogam em uma escola, assim começa a nossa alfabetização. Esse processo é tão importante, que se torna uma prioridade em ensinar nos primeiros anos de vida.

Alfabetizar como verbo tem uma origem interessante, pois em significado etimológico reúne os termos Ação (izar) + Alfa (Alpha, letra grega “α”) + Beta (Beta, outra letra grega “β”), em termos pedagógicos, segundo o dicionário Michaelis, é o “Processo de aquisição do código linguístico e numérico; letramento.”. Em suma, alfabetizar é ensinar a língua de forma rudimentar, e começa ainda quando esse projeto de ser humano está em formação, quando ele ouve sons indecifráveis na barriga de sua mãe e começa a criar as primeiras ligações neurais, forçadas talvez por uma ação natural e instintiva, são os primeiros fenômenos de apofenia que construirão as bases de seu sistema cognitivo. Alfabetizar define um processo essencial da formação humana, mas a origem do seu nome significa é talvez tão abstrato quanto a origem humana.

Junto com esse processo de aquisição de código linguístico, a escola trabalha a nossa cognição artística, fazemos desenhos, ligamos traços, completamos labirintos, aprendemos a interagir com sistemas rudimentares de codificação cognitiva, utilizamos nossos sentidos e aperfeiçoamos nossa coordenação motora a fim de amadurecer os padrões neurolinguísticos criados através da apofenia, e isso instintivamente cria ligações neurais com símbolos humanos a séculos conhecidos, a base disso é a pareidolia, a nossa habilidade instintiva de reconhecer formas, mesmo onde elas não existem, a fim de nos proteger de um possível predador ou perigo, a pareidolia é a base para nossa capacidade de ler e escrever, é o inicio da Ciência que chamamos de Semiótica.

A face de marte — Viking 1, NASA

Com isso, e com ajuda das interações sociais nesse período de alfabetização, somos apresentados gradativamente ao alfabeto, letra por letra aprendemos como escrever e como essas letras se associam a como falamos, novamente nossos sentidos são utilizados para a construção de cada Signo (vide Semiótica), a letra “A” tem uma forma (visão), um som (audição), e uma fonologia (fala) e esse processo, se trabalhado corretamente se torna uma atualização nos nossos processos cognitivos já construídos, que nos permite criar um signo que transcende uma dimensão semiótica e se torna a base para um sistema de comunicação em sociedade (vide Psicolinguística). Quando aprendemos que as letras podem ser combinadas com outras, formando signos complexos e infinitos que permitem que expressemos praticamente qualquer coisa que passe em nossa cabeça através da fala, escrita (e etc), nosso universo cognitivo presencia uma gigantesca expansão.

Quando aprendemos a desenhar as letras, formas complexas oriundas de combinações de várias formas geométricas simples, utilizamos basicamente tudo que aprendemos até o momento como ser humano, unimos nossa cognição artística aprimorada evolutivamente para moldar formas geométricas básicas através das nossa mãos com polegares opositores, com geometria básica que aprendemos desenhando formas geométricas básicas, estamos combinando caminhos neurológicos novos, formando novos conhecimentos e tudo isso resulta em nossa caligrafia.

Quando somos alfabetizados, criamos nossa caligrafia, e descobrimos que usamos (geralmente) uma mão dominante (destro ou canhoto) para esse processo, que neurologicamente se liga a como o nosso cérebro essencialmente funciona. A caligrafia é uma forma de arte visual, é nossa impressão pessoal de como codificamos nossos pensamentos a fim de comunicá-los a outras pessoas, e junto com a fala e expressões artísticas, é a forma como podemos materializar nossos pensamentos, expressões e sentimentos a fim de apresentá-los a outras pessoas para que consigam decodifica-las e compreende-las. Nossa caligrafia é uma impressão básica de como nossa mente funciona, e a caligrafia evolui como evoluímos, ela representa, assim como qualquer expressão artística, nosso estado naquele momento em que escrevemos, uma escrita mais corrida demonstra pressa, uma escrita desleixada demonstra um escritor ansioso em escrever seu raciocínio antes que esqueça, nada pode ser mais pessoal que a caligrafia.

Porém hoje, digitamos ao invés de escrever, o próprio termo digitar pode ser interpretador como “ação de digitalizar, ou seja, converter algo material para a codificação digital, matemática”. Nós perdemos nossa capacidade de escrever em troca da comodidade que os computadores oferecem. Ao digitar uma sentença, ainda expressamos nossos pensamentos e sentimentos, porém utilizamos da caligrafia de outra pessoa para tal ação.

Isso trás vantagens e desvantagens, como vantagem, facilitamos a compreensão, pois padronizamos as letras e símbolos permitindo melhor compreensão, facilitamos a tradução, edição, publicação e compartilhamento de nossas ideias e garantimos a compreensão de uma receita médica sem a necessidade de um profissional treinado em decodificar os garranchos dessa receita (farmacêutico), porém perdemos a personalidade de nossos textos.

Ao desenvolver um artigo, uma dissertação, um poema ou uma crônica, utilizamos um tipo padrão de letra (typeface), que conhecemos como “fontes”, Arial, Times, Helvetica, Calibri, são infinitas as possibilidades de estilos (esse texto, publicado originalmente no Medium.com está apresentado em Kievit Serif). Hoje existem empresas e especializações acadêmicas e artísticas com a finalidade de desenvolver fontes com princípios semióticos capazes de permitir uma compreensão universal.

E tudo isso começou com Johannes Gutenberg, antes desse cidadão criar a primeira impressora (ou prensa para os íntimos), os livros e publicações eram escritas a mão, por um profissional chamado escriba que desenvolvia e treinava sua caligrafia para se assemelhar a padrões desejáveis, e podiam mudar conforme o escriba e o tempo. Nesse tempo, um livro como a bíblia podia ter milhares de volumes, e ser considerada por si só como uma biblioteca. Mas sem dúvidas, cada exemplar seria único, e inclusive hoje, alguns são leiloados por grandes fortunas se foram escritos por escribas famosos.

Com a primeira prensa, foi necessário a criação de carimbos padrões que representem as letras de forma como os escribas as escreviam, na região de Gutenberg, o estilo predominante era a escrita gótica, e a primeira fonte tipográfica criada foi chamada Textura, criada a partir do estilo gótico.

Muito dos primórdios da tipografia estão incrustados em nossa vida até hoje. Como qualquer signo evolui, esses signos evoluíram e são incorporados em editores de texto eletrônicos, e seus termos utilizados naturalmente. Por exemplo, o termo escrita itálica que representa uma letra inclinada surgiu de editores italianos que buscavam incorporar mais letras por linha de papel, otimizando espaço, isso porque, as letras na época necessitava ser fundida em metal, criando uma espécie de carimbo que era alinhado formando as palavras e devido as limitações tecnológicas da época, letras pequenas eram difíceis de serem fabricadas.

Aí entra outra relação linguística, o termo fonte deriva do inglês “font” que deriva do francês “foundue” cujo termo é o feminino particípio passado passivo do verbo francêsfondre”, que significa derreter.

Depois de derretidas e moldadas conforme o padrão tipográfico desejado, afinal, cada jornal e editora criava sua própria fonte, essas letras iam para as prensas, sendo armazenadas em caixas para facilitar a diagramação, com o tempo, os diagramadores padronizaram a forma de separar as letras em caixas separadas conforme o tamanho e a frequência na qual eram utilizadas, as letras minúsculas e usadas com mais frequência iam para caixa baixa (lower case) e as maiúsculas, usadas com menos frequência iam para a CAIXA ALTA (upper case).

A ciência da tipografia é recheada desses termos herdados da profissão dos escribas e tipógrafos das antigas prensas, e até hoje, mesmo que você não utilize uma prensa de Gutenberg, utiliza dos conceitos desenvolvidos por ele e pelos profissionais que começaram a utiliza-las.

Essa mesma necessidade humana de criar essa retrocompatibilidade de termos a adaptar o novo a signos já fundados é a base para a nossa mente e seu fundamento, e como todo conhecimento humano se complementa de forma com que nós consigamos nos comunicar com nossos filhos e vice versa.

É o que nos torna tão bons comunicadores.

E não, a letra de ninguém pode ser considerada feia, a caligrafia é uma expressão, algo mais pessoal do que universal, na qual é julgada pelos padrões tipográficos considerados corretos por algo criado através da prensa. O dia que o ser humano nascer com impressoras ao invés de mãos, podemos conversar.

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João Henrique Riboli
Gafanhotos e Mafagafos

Tá na hora de explicar o por quê tenho textos sobre tecnologia e outros assuntos como ciências sociais e letras. É porque eu gosto e estudos essas áreas.