Como assim, “Gak!”?-perguntam Vas. Exas…

David Rodrigues
Gak!Gak!
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3 min readJun 1, 2022
O surgimento do “Gak!”

E ninguém responde. No início, a questão abre portas ao habitual e existencialíssimo silêncio ensurdecedor. Seguem-se as também habituais onomatopeias refletivas, os zumbidos, pigarreios, a tosse dissimulada de plateia e, quase sem darmos por ela, estes precursores de caos civilizado cedem o lugar às velozes volúpias do real e visceral omnivorismo. Cultural? Canibal! Etcetera e tal.

De repente, dá-se um milagre do zeitgeist gakiano: Deixa de haver loiça suja sem, no entanto, alguém a ter lavado. As badaladas deixam de anunciar as horas, com uma cadência ensurdecedora que, como um baterista psicótico feito de tijolo medieval alojado nas entranhas dos edifícios religiosos, ecoa hinos raivosos de fervorosa oposição à passagem vagarosa do tempo. E os dias transmutam para semanas, e as semanas para meses, e esbate-se a medição temporal como o lamber progressivo de um prato do sumo, sangrento e visceral, que escorre do suculento, grotesco e não-especificado bife para as mandíbulas desesperadas e famintas de alguém que abraça cada vez menos conceptualmente (e contra todos os resquícios de sensatez) a ideia de ameaçar um funcionário do KFC para lhe extorquir muito desejadas e crocantes pernas panadas de galinha industrial.

As pupilas dilatam-se de antecipação e felicidade, fascinadas pela ocorrência de uma das mais belas realidades que qualquer aglomerador de palavras com historial de servitude aos caprichos institucionais de todo o tipo de editores, chefes de redação, corretores ortográficos, tradutores mesquinhos, enfim…o todo da zoologia de fascistas literários, pode experienciar: Escrever, com deleitoso e diletante sentido de impunidade, frases de meio parágrafo. Vêm à mente visões, ainda que turvas, do sorriso cúmplice da Professora Maria das Dores Vilaça ao entregar uma composição repleta de tentáculos de polvo, pânico, surrealismo e referências bíblicas.

O quarto é todo branco (tirando a tralha a ele imposta por quem o habita, ainda que alguma dessa tralha também a seja), a vista é bonita, ainda que tapada por uma alergia em recuperação aos raios de sol. Há uma televisão, ainda por ligar em três dias de estadia com previsões alegremente morosas nesta críptica paragem. É o chamamento do Purgatório da Portugalidade, com os seus sinos labutando incansavelmente(ainda que, durante grande parte dos últimos três anos, em parcial ou total surdina) um coração criado no vórtice de um ziguezaguear constante pelas geografias do mundo e da mente. Coimbra fecha o punho, e um sombrio espírito que, para seu amplo cansaço, arrasta consigo uma desgastada, ainda que jovem, carcaça humanóide de ossos, pele, tecido muscular em luta permanente com a rigidez dos ossos, e de um campo de batalha lipidinoso cada vez mais escasso. Carne que se desfaz aos poucos, couro à cinta que se fura cada vez mais fino, metal que penetra cada vez mais próximo da alma.

Estar vivo é a arte de experimentar um crescendo de proximidade com a morte. Na maior parte dos casos, esse crescendo nem sequer espera pela morte de quem o vive, e o ser vivo acaba por experienciar a morte, muitas vezes, várias vezes ao dia. A morte, e o potencial mortífero, está por todo o lado-nas gotículas virais dos pandémicamente importunados, desde o final de 2019. Na insolação fatal do condutor do camião-barril que transportava a água para um centro de estudos no deserto da Namíbia. Todos os dias, às nove e numa míriade de outros convenientes horários, no telejornal. No ecrã da televisão, ficcionada, real e em todos os intermédios possíveis. Na fronteira entre mortalha e filtro. No galináceo cacarejante com aspirações a McNugget. No espermatozoide que não atravessa as paredes do ovário. Acima de tudo, no prato vazio, e especialmente naquele que nunca esteve cheio.

A morte também está aqui. Reparem só:

-Fim.

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