Ecos da Galeria #03: Nenhuma escrita com as mãos, mas muita escrita com o ❤

Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta
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12 min readOct 1, 2017

O título dessa edição ficou meio dramático, né?

Mas, apesar de ser bem cafona, escolhi mantê-lo porque ele não podia ser mais verdadeiro: nesse mês de setembro eu não escrevi absolutamente nada, mas ao mesmo tempo escrevi pra caramba. Zero palavras digitadas, muitas coisa acontecendo dentro de mim — e eu acredito de verdade que metade da escrita é o que acontece dentro da gente.

Em setembro, eu saí do meu emprego e tirei o mês de férias. Passei alguns dias em casa organizando os vários tipos de bagunças geradas pela transição entre duas rotinas e também viajei com os meus pais, minha irmã e meu cunhado. Pela primeira vez, fomos todos juntos pra fora do país: passamos oito dias em Nova York e mais três dias em Washington D. C., e de lambuja ganhamos uma quest-surpresa de ter que arrumar, em menos de 24 horas, um jeito de voltar pro Brasil depois de uma greve gigantesca dos pilotos da Avianca que resultou no cancelamento do nosso voo 12 horas antes do embarque. Ou seja: muitas emoções em 30 dias. E por mais que a despedida do meu emprego de seis anos tenha causado várias reflexões férteis na minha cabeça, foi essa viagem de onze dias que mais gerou material pra minha escrita.

No maravilhoso livro Mar sem fim: 360º ao redor da Antártica, Amyr Klink diz: “Hoje entendo bem meu pai… Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livro ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor e o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver… ‘Il faut aller voiré preciso ir ver! É preciso questionar o que se aprendeu. É preciso ir tocá-lo”.

Sou apaixonada pela mensagem desse trecho desde a primeira vez que li esse livro, lá no comecinho dos anos 2000, quando eu ainda era uma criança de classe média-baixa sem muitas perspectivas de conhecer o mundo. Mas eu cresci, virei outra pessoa, coisas boas aconteceram, acabei até tatuando parte dessa frase nas costas e, certamente um tanto inspirada pela trajetória do Amyr, decidi investir boa parte do meu tempo livre e das economias que comecei a juntar desde o meu estágio do curso técnico pra conhecer outros lugares.

E acabou que viajei bastante, a passeio e a trabalho. Antes de visitar os EUA esse mês, já estive em 18 países na América do Sul, Europa e Ásia e também andei um pouco pelo Brasil. Algum dia vou falar sobre isso em um artigo lá no meu Medium, mas na maior parte das vezes eu viajei sozinha por escolha própria, pra surpresa de um monte de gente que acha essa ideia solitária, triste ou até perigosa. Mas pra mim, viajar sozinha é um processo valioso justamente pelo modo focado com que a minha cabeça processa coisas novas enquanto estou longe da minha casa, de pessoas que eu já conheço, de todas as zonas de conforto possíveis e imagináveis. Viajar com outras pessoas traz outras alegrias e sensações, mas sem dúvidas é um modo igualmente válido de “ir ver”. E foi isso que eu fiz nesses dias fora. Fui, vi, vivi um monte de coisa.

Vivendo em um país como o nosso, em que é um desafio considerável conseguir dinheiro pra pagar as contas do mês antes de começar a pensar em qualquer ideia de viajar pra longe, eu me sinto na obrigação de fazer uma ressalva sincera aqui: não precisa ir pra outro país pra “ir ver”. Nem pra outro estado. Nem pra outra cidade. Apesar de ter sido dita por um dos poucos indivíduos que já visitou os dois polos do planeta, a parte importante da frase é: “Um homem precisa viajar para lugares que não conhece”. E o mundo é gigante e maluco o suficiente pra que qualquer lugar um pouco longe da nossa cama seja um lugar desconhecido.

Hoje, falar da importância de conhecer lugares novos soa bem auto-ajuda, eu sei, e eu fico frustrada por isso. Por alguma razão estúpida, uma coisa tão fundamental como viver novas experiências é mais uma coisa que foi romanceada a ponto de ganhar essa aura abstrata e elitista, esse monte de filtros do Instagram, esse verniz esquisito que faz a gente acreditar que só dá pra “ir ver” e aumentar o arcabouço de sensações dentro da gente se for assistindo o pôr-do-sol embalado em uma rede na Tailândia, ou na plateia de um festival de música indie em alguma capital europeia bem cool, ou espirando o voo dos condores no topo de uma montanha na Cordilheira dos Andes.

Entenda: todas essas coisas devem ser mesmo legais. Mas o mais irônico disso tudo é que, por mais valiosas e lindas que sejam experiências como essas, não são elas que representam a ideia de “ir ver” que eu acho tão importante pra escrita. Não são elas que tornam alguém mais interessante ou de repertório mais rico, e não são elas que acrescentam aquele delicioso toque de realidade a uma narrativa de ficção. Nem de longe. Aquela máxima do “escreva sobre o que você conhece” é realmente ótima, mas só se você entender esse conceito do jeito certo — e o jeito certo não compreende pegar as suas experiências mais exóticas e transcrevê-las (isso é um relato de viagem, no caso).

Eu, por exemplo, nunca escrevi sobre minhas experiências com trilhas nas montanhas peruanas, com micro-aeroportos cheios de caças militares no meio do deserto entre a Índia e o Paquistão, com calabouços de castelos na Dinamarca, com templos cheios de macacos em Bali, com ruas impecáveis de Singapura, com os lobos guará comendo no adro do Santuário do Caraça ou com o fedor de morte que uma fábrica de sebo na margem argentina do Rio Paraná emana às sete da manhã, quando chegam as carcaças brancas e vermelhas e meio marrons.

Mas eu já escrevi sobre como o pé fica parecendo o pé de um cadáver depois de ficar muitas horas dentro de uma botinha molhada, sobre o desespero seco que traz a poeira grudando nos pelinhos do nariz até a gente começar a assoar terra, sobre como o frio aperta o peito e faz o mundo parecer muito amplo, muito claro e muito vazio, sobre como a ordem urbana forçada traz uma segurança bamba que parece sempre às beiras do colapso, como o barulho da natureza tem a capacidade de parecer silêncio (algo que você pode ler em Sombras, minha noveleta) e sobre como o sol às vezes passa pelas nuvens cheias de chuva de um jeito bonito, batendo de ladinho na superfície da água pra produzir aquele brilho dourado que a faz parecer mercúrio.

E isso porque são essas coisas que eu acho que fazem sentido pras pessoas que, espero, vão ler meus escritos. Eu gosto de ler sobre coisas que fazem sentido na minha vivência, que me fazem pescar sensações similares dentro de mim, que fazem a ficção entrar em ressonância com a verdade que eu já vivi.

Eu acabei de voltar de Nova York e não tenho nenhuma perspectiva de escrever sobre o Central Park ou sobre a Times Square ou sobre pessoas indo trabalhar de metrô com copinhos de café fraco como a gente vê o tempo todo nos filmes. Mas eu já sei que quero escrever sobre a sensação de alerta quando uma sirene começa tocar ao longe, subindo e preenchendo o espaço entre os arranha-céus até parecer que está em todos os lugares. Ou sobre a sensação deliciosa de tirar os tênis e o sutiã apertado e tomar um banho e deitar numa cama limpa, sentindo o toque geladinho do lençol cheiroso bem tensionado sobre a pele quente de insolação. Ou sobre esbarrar na rua com uma escadinha que leva a um porão abandonado, que tem uma janela coberta por dentro por pedaços de jornal que estão rasgados em um cantinho, o suficiente pra você olhar através e enxergar apenas uma única cadeira em uma sala poeirenta, e mais além uma porta aberta que está oscilando de leve pra lá e pra cá porque pode ou não ter sido aberta segundos antes por… algo.

E o mais legal é que isso me faz lembrar que eu também quero escrever sobre o cheiro de milho delicioso que te atinge assim que você sai do metrô Consolação no meio da Paulista em um fim de tarde de um sábado de inverno. E sobre a ladeira íngreme da Liberdade que leva até um restaurante pequenininho que tem uma fila de horas, pimenta branca que faz coçar a garganta e garçons que te expulsam depois que você come pra dar espaço pra novos clientes o mais rápido possível. E sobre o céu nublado quase branco que traz um friozinho esquisito que pode ser deliciosamente confortável ou opressor, depende da sua companhia e do seu estado de espírito. E vamos parar por aqui porque talvez esteja falando muito sobre o romance da Galeria? Hehe…

Um último pensamento: sim, é preciso um pouco de cuidado pra não confundir a necessidade de viver e criar esse estoque de sensações com a temida procrastinação. Assim como há um limite muito borrado entre consumir entretenimento como uma forma de inspiração e consumir o mesmo entretenimento pra fugir da parte dura que é sentar e digitar as palavras.

Às vezes, o que eu faço pra fugir dessa auto-sabotagem é anotar ou escrever trechos aleatórios sobre sensações assim que elas me ocorrem. Coisas que poderão entrar em qualquer obra minha ou talvez nunca ver a luz do dia. Às vezes eu estou vivendo a vida e sinto de novo a sensação que me fez produzir aquele excerto, aí me dá um calorzinho no coração e me pego relendo o trecho e imaginando onde ele pode se encaixar em alguma das novas coisas que estou escrevendo. Ontem mesmo, enquanto escrevia a primeira parte da newsletter, começou a armar um temporal aqui em Paulínia e eu lembrei de um dos trechos que, embora não tenha realmente nada de mais, é um dos meus escritos preferidos. E que, curiosamente, ainda não arrumou um lugar definitivo (talvez também entre no romance?).

Téo gostava dos dias de chuva. Gostava da sensação de urgência despertada pelo súbito escurecimento do céu, dos redemoinhos de vento que faziam dançar as folhas e a poeira das ruas, das hachuras perfeitas que as gotas traçavam no plano perpendicular ao horizonte quando caíam todas na mesma direção. Gostava especialmente da aura que as precipitações emanavam quando se aproximavam; de como, indefectível, a sensação penetrava todas as construções de ferro e de concreto a despeito das portas e janelas cerradas. Gostava de como a chuva impunha-se, de como se fazia notar pela simples e repentina queda na pressão atmosférica, despertando nas pessoas um sexto sentido perdido de natureza mais barométrica do que mística.

O trecho fala sobre chuva, basicamente, algo que eu vi em muitos lugares do mundo mas que sempre desperta uma coisa parecida dentro de mim. Esse sexto sentido perdido de natureza mais barométrica do que mística, acho. :)

Enfim. Você também tenta escrever sobre essas pequenas coisas que podem conversar com o que existe dentro dos seus leitores? Se tiver algum trecho que curte, ou alguma sensação específica que você fez questão de tentar transmitir em algum escrito seu, responde esse e-mail me contando que eu adoro essa coisa de bastidores de escrita. Fica tranquilo que sua resposta vem só pra mim.

Se você é novo por aqui e quer ler as edições anteriores da newsletter, pode acessar o arquivo clicando aqui ou visitando o meu Medium, que agora também conta com o arquivo da Ecos na publicação da Galeria Creta. E se qualquer um de vocês quiser indicar a newsletter pros seus amigos, pode encaminhar esse e-mail mesmo ou mandar direto o link pra se inscrever, que é esse aqui.

Abraços,

Jana Bianchi

PRA OUVIR | Esse mês rolou a campanha #LeiaNovosBr, um apanhadão de material sobre literatura independente nacional organizado pelo Covil Geek e Leitor Cabuloso, que já abrem essa seção de recomendações como dois ÓTIMOS canais pra ler e ouvir sobre literatura. A campanha está acabando junto com setembro, mas deixo o convite: busquem a # nas redes sociais e ouçam, leiam e assistam os programas envolvidos. Tem MUITA coisa legal, backlog pra um tempão de conteúdo. O Curta Ficção participou com dois episódios que amamos fazer, um sobre publicação digital independente com Thiago D’Evecque e Camila Guerra e outro sobre tradução literária com Santiago Santos e Camila Fernandes.

PRA LER FICÇÃO NACIONAL | Pretendo aumentar meu volume de leitura agora no ano sabático, mas por enquanto não estou lendo com velocidade suficiente pra indicar só minhas últimas leituras por aqui. Então resolvi acionar meu Goodreads e de agora em diante vou recomendar coisas que li nos últimos meses. Hoje indico A Canção das Sereias, do meu amigo CAFiano Renan Santos. O conto se passa no universo que o Renan criou, Erys, e é um ótimo exemplo de como contar uma história sobre pessoas disfarçada de uma história sobre outras coisas fantasiosas — sereias, por exemplo. O Renan é um querido e escreve sobre cultura pop, escrita e literatura no blog Ponto de Acumulação. Além de escritor, ele é doutorando no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, mas juro que é uma boa pessoa e só morde se ameaçado.

PRA LER FICÇÃO GRINGA | Sempre indicamos lá no Curta Ficção, mas vou reforçar a recomendação: se você curte ficção científica ou histórias profundas muito bem contadas, você precisa conhecer o Ted Chiang. Recomendo tudo o que já li dele, mas a coletânea Stories of Your Life and Other (publicada por aqui pela Intrínseca como Histórias da Sua Vida e Outras Histórias) é uma ótima seleção. Nesse link do Goodreads você pode ler minha resenha sobre a leitura. O conto Stories of Your Life inspirou o filme A Chegada, que fica aqui como uma recomendação bônus caso você seja um heptapod e ainda não tenha ouvido falar desse filme que foi indicado ao Oscar de melhor filme em 2017.

PRA LER NÃO-FICÇÃO | Eu gosto de me posicionar sempre que tenho uma opinião formada sobre algo polêmico, até mais do que seria saudável. Mas como estava viajando, me permiti um pouco de paz e não falei muito sobre a censura da exposição do Santander e seus desdobramentos. Propositalmente omiti esse assunto da newsletter, mas a Naná DeLuca falou por mim nesse artigo no Medium.

PRA CONHECER | Eu amo newsletters com toda a minha força e, pra minha alegria, recentemente um monte de gente legal começou a enviar as próprias ideias por e-mail. Nessa edição quero recomendar duas relativamente novas: 1. A Ciencificção, do André Caniato, que fala sobre ficção científica (mas nunca só sobre isso) e 2. A Palavras do Franklin, do Franklin Teixeira, que faz reflexões muito legais sobre assuntos diversos. Eu ainda estou devendo a leitura dos livros dos dois, que são outros dois queridos, mas só escuto falar bem de Isso Não é Um Livro de Matemática e Verdades Invisíveis.

PRA APOIAR | Não é segredo que sou fã da Revista Trasgo, um dos projetos mais consistentes e sérios dentro da ficção especulativa nacional. Sou madrinha do projeto no Padrim e é graças aos apoios por lá que a Trasgo paga as autoras e ilustradoras e ainda produz um podcast, que alterna audiodramas dos contos publicados pela revista com episódios para discussão de cada conto. Falta pouco pra Trasgo alcançar a próxima meta, que é ter uma quinta edição por ano. Ajuda lá! :)

PRA IR | Já perceberam que tem semana em que acontecem 28.763 coisas (geralmente no mesmo dia e horário) e na outra os dias ficam tão vazios que só falta passar aquelas bolinhas de feno rolando ao fundo? Pois é, aparentemente estamos nesse tempo de eventos magros. Se você sabe de algum evento legal que vai rolar em outubro em São Paulo e região, pode responder esse e-mail com a indicação que eu vou adorar!

Hoje não tem lambe-lambe e a porcaria acima OBVIAMENTE não foi feita pelo Bruno Müller (que provavelmente vai querer me matar ao ver essa caca… Mas é o que temos pra hoje.)

Cara ouvinte,

Tem hora que a gente tem que admitir que não dá pra fazer tudo. Mesmo que você tenha o poder de manipular o tecido do tempo-espaço — que é o nosso caso lá na redação do Tempos Fantásticos — , sempre vai ter mais coisa pra fazer do que tempo disponível para fazê-las. Essa é uma lei universal que infelizmente só será formulada daqui algumas décadas. Até lá, as pessoas manterão a esperança despropositada de conseguir fazer todas as coisas do mundo e isso ainda vai causar muita dor, choro, sofrimento e derramamento de sangue.

Vou admitir que mesmo de posse desse conhecimento privilegiado eu ainda sofro um pouco pra deixar coisas de lado. Mas aí eu coloco a música do Caetano pra tocar, listo as prioridades e me conformo que algumas coisas vão ficar pra trás.

O fato é: esse mês não conseguimos gravar o programa porque outras coisas importantes aconteceram. E tudo bem, né? Peço desculpas a você que estava esperando a edição de hoje, mas lutar contra leis da natureza sempre causa a) catástrofes irreparáveis e/ou b) coisas com qualidade inferior à que deveriam ter. E aqui, na Ecos da Galeria, trabalhamos com igual dedicação pra evitar ambos.

Se você chegou só se juntou à nossa resistência e ainda não ouviu os programas, essa é a hora de visitar o Beco e ouvir a Ecos #00, a Ecos #01 e a Ecos #02.

VÁ PARA O BECO ESCUTAR OS PROGRAMAS ANTERIORES

Mês que vem voltamos com mais notícias, achados e perdidos e informações sobre o caso de Benedito Gaia. Se você tiver algo pra me falar até lá, você pode me contatar pelo e-mail ecos@galeriacreta.com.br ou respondendo este e-mail. Pode ficar sossegada que sua resposta vem só pra mim e pra Jana. :)

Saudações,

Nana Ferreira

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Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta

Escritora, engenheira, viajante e passeadora de lobisomens. Autora de Lobo de Rua (bit.ly/lobojana).