Ecos da Galeria #06: Darwinismo Literário

Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta
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9 min readJan 6, 2018

Permitam-me começar essa newsletter com uma referência da Wikipedia:

“Darwinismo é um conjunto de movimentos e conceitos relacionados às ideias de transmutação de espécies, seleção natural ou da evolução, incluindo algumas ideias sem conexão com o trabalho de Charles Darwin. A característica que mais distingue o darwinismo de todas as outras teorias é que a evolução é vista como uma função da mudança da população e não da mudança do indivíduo.

Os negritos são meus, e é com base neles que venho defender que o mercado literário segue algo muito próximo à celebre teoria aplicada aos seres vivos — daí o título deste e-mail. Há tempos penso nesse tema, há tempos considero escrever um texto no Medium ou uma newsletter sobre ele, e esta edição já estava praticamente destinada a um outro tema quando me deparei com a primeira Treta Literária™ de 2018 e resolvi discorrer sobre esse tópico.

Tretas passadas não movem moinho, mas bons entendedores & frequentadores assíduos das redes sociais entenderão a que treta me refiro. Pra quem não sabe do que eu estou falando, o resumo é simples:

<treta> Um rapaz entrou em um grupo de escrita do Facebook pedindo indicação de editora pra publicar o livro dele. Tudo no post sugere que o menino não só não sabe minimamente como funciona o mercado literário como, também, é bem iniciante e descuidado com o que escreve (descrição padrão de um adolescente com ansiedade e energia acumuladas, acesso à internet e um novo hobby pra ocupar o tempo). Membros do grupo responderam com sarcasmo, ironia e até desrespeito. O menino devolveu as patadas e saiu do grupo. Alguns riram, só surfando a zoeira. Outros apontaram a conduta chata dos primeiros, estes tentaram se justificar com todo o tipo de argumento que não deveria estar na boca de alguém que quer ser escritor sério e a treta aumentou. Teve gente saindo do grupo, acho que teve gente sendo banida — mas teve discussão civilizada também, felizmente. </treta>

Sabe aqueles documentários de vida selvagem do National Geographic que instala câmeras na selva pra observar o comportamento de animais em seu habitat natural? Então. Se houvesse uma variante destinada a explorar o ambiente inóspito que é o mercado literário brasileiro de ficção especulativa, a cena que eu descrevi acima certamente seria uma das registradas. E esse registro incluiria basicamente todos os principais elementos do ecossistema referido: abundante desconhecimento sobre o funcionamento básico do mercado, altos níveis de ego inflado, potencial publicação de textos fraquíssimos e alta susceptibilidade a passadas de perna (na treta, houve quem indicasse vanity presses pro menino publicar, mesmo sendo claríssimo que ele não estava pronto pra publicar nada), predileção pelo processo de publicar em detrimento do processo de escrever, espécimes arrogantes (que, ironicamente, geralmente não são publicados ou best-seller, como o nariz empinado sugere), espécimes experientes sem disposição de cooperar, alguns espécimes experientes com disposição de cooperar, espécimes adeptos da zoeira e por aí vai.

Reação padrão de alguns dos seres típicos desse ecossistema: SE ME ATACÁ EU VÔ ATACÁ

Minha proposta com esse texto é continuar bancando a cientista da National Geographic, pegar os dois destaques que fiz na definição de darwinismo lá em cima e discorrer um pouquinho sobre porque estamos onde estamos e o que podemos fazer pra crescer.

Tudo na minha humilde opinião, claro, e lembrando que esse comportamento muito provavelmente não é exclusivo desse nicho da ficção especulativa brasileira — mas falo com mais propriedade por estar inserida justamente nele.

Pega aí o seu binóculo e vem comigo.

“Seleção natural”
Síndrome do vira-lata é uma coisa ridícula e tóxica, e eu sou a primeira pessoa a condenar aqueles que fazem menos da literatura nacional só porque é nacional. Porém, eu acho fundamental reconhecer nossas fraquezas, e a principal delas é: o mercado literário de ficção especulativa brasileira ainda não é forte ou abundante o suficiente em publicações pra selecionar naturalmente destaques merecidos, o que faz com que mesmo os destaques existentes não necessariamente o sejam em um mercado mais forte. E, desse ponto em diante, todas as comparações serão feitas com o mercado estado-unidense — o mercado benchmark da ficção especulativa, por assim dizer.

DISCLAIMER 1: não quero dizer que quem se destacou até hoje nesse mercado não mereceu. Quero dizer, ao contrário, que 1) não são todos os merecedores que se destacam, 2) esse destaque rarissimamente é natural, mas sim fortemente influenciado por muitos outros parâmetros (atributos externos à qualidade do livro, como já comentei na edição passada da newsletter), e 3) a MÉDIA da qualidade dos destaques nacionais não se iguala à MÉDIA da qualidade dos destaques do mercado americano — afirmação com maiúsculas que esclarece que não estou comparando obras específicas.

Em termos numéricos, essa análise faz todo o sentido: nosso mercado é pequeno, com uma quantidade relativamente baixa de livros publicados por ano em comparação ao mercado dos EUA. Este infográfico baseado em uma pesquisa na UNESCO de alguns anos atrás já traz alguns números pra gente começar a conversar: na época da pesquisa, eram quase 21 mil títulos publicados por ano no Brasil contra quase 305 mil títulos publicados por ano nos EUA. Considerando as populações atuais dos dois países, teríamos algo como 0,05 livros publicados a cada mil habitantes brasileiros contra 0,95 livros publicados a cada mil habitantes estado-unidenses, número quase vinte vezes maior. Estes dados consideram livros traduzidos e livros publicados por nativos, mas esse fato só aumenta o abismo entre a quantidade de livros escritos em cada país que chegam a ser publicados, já que o Brasil é um país tradutor enquanto os EUA não o são.

Isso significa que, por questões estatísticas mesmo, há mais chances de encontrarmos obras de alta qualidade no mercado americano do que no mercado brasileiro simplesmente porque HÁ muito mais obras circulando e sendo produzidas no primeiro. Em uma população estatística maior, naturalmente a influência de atributos externos é diluída, o que em termos práticos quer dizer que a competição é cada vez mais acirrada e um livro precisa ser cada vez melhor pra se destacar entre os demais. Isso faz ainda mais sentido considerando que não só o número de títulos publicados nos EUA é maior como o é, também, o número de leitores e de exemplares vendidos — o que, naturalmente, também aumenta a população estatística de compradores, tornando a avaliação da qualidade do livro mais assertiva. Para os não iniciados em estatística (não que eu seja lá grandes coisas rs), é como quando a gente vê um livro no Goodreads com três avaliações e nota média 4,3 (duas notas 5 e uma 4, por exemplo) e outro livro com 99873 avaliações e nota média 4,2 — embora tenha nota mais baixa, o segundo, idealmente, é consistentemente muito melhor que o primeiro, já que os desvios de notas extremamente altas (tipo a nota dada pela mãe do autor) ou baixas é diluído muito melhor em 99873 do que em três.

DISCLAIMER 2: por “competição”, termo que usei ali em cima, não quero dizer que o mercado literário é uma simples dança das cadeiras com um número limitado e estático de espaços pra serem ocupados por livros nacionais, e quem chegar primeiro pega. Talvez funcione assim perto da saturação, como talvez seja o mercado dos EUA, que cresceu e se aperfeiçoou tanto quanto pode ao longo dos anos. Mas aqui, no Brasil, estamos em um momento em que o mercado ainda é elástico, em que há um potencial GIGANTE de não-leitores que ainda podem ser convertidos em leitores. Nesse caso, a competição entre autores praticamente inexiste e acho até plausível dizer que a relação entre nós funciona mais como uma simbiose, na qual mais livros publicados significa mais livros lidos, que significa maior quantidade de leitores angariados, que significa mais espaço para novos autores.

Vale dizer que, em termos históricos e culturais, essa diferença entre mercados também faz total sentido. O mercado americano de ficção especulativa é mais velho e mais experiente que o nacional, o que se reflete em escritores, editores e leitores mais bem preparados e conscientes de seus respectivos papéis. Por lá, você pode se graduar e se pós-graduar em escrita criativa nas principais universidades do país, enquanto por aqui a única opção de graduação formal, até onde eu sei, é o curso de 5 semestres ministrado pela PUC-RS, em Porto Alegre. Por lá, o mercado de ficção curta é prolífico e valorizando, enquanto que por aqui são poucos os espaços de publicação de contos com curadoria devida, remuneração e visibilidade.

Seleção natural dando ruim…

Enfim. Na minha opinião, a treta que eu descrevi mais essa fundamentação numérica dão uma boa noção do ponto em que estamos hoje. Mas, além disso, vejo nos desdobramentos da confusão descrita uma sugestão de caminho por onde devemos seguir se quisemos sair do buraco.

“A evolução é vista como uma função da mudança da população e não da mudança do indivíduo”
Acho que nem todos que esculhambaram o menino da treta tinham a mesma motivação. Acho que boa parte das pessoas foram grosseiras só pelo poder que tinham de serem escrotos, aproveitando daquela coragem toda que a internet dá aos covardes. Mas gosto de pensar que algumas outras só deram escape a uma angústia compartilhada, acho eu, por todo mundo que sonha com uma carreira literária séria: a sensação de que estamos no fundo do buraco e as coisas não vão melhorar tão cedo.

Eu mesma sinto isso o tempo todo. Toda vez que vejo uma “editora” abrindo submissão pra coletânea paga de contos, toda vez que vejo a galeria inocente caindo nessa, toda vez que pego um livro publicado em papel com problemas grotescos de enredo, revisão e formatação (ou seja, editados com muita falta de perícia, ou simplesmente não editados), toda vez que vejo escritores mostrando desconhecimento absoluto de mercado ou mesmo de escrita, toda vez que vejo um autor tentando promover o trabalho usando spam ou outras ferramentas duvidosas, toda vez que vejo um blogueiro ou leitor enaltecendo um livro péssimo só porque é amigo do autor, toda vez que avaliamos as estatísticas do Curta Ficção e o número de ouvintes dos episódios sobre como publicar ultrapassam em muito os números de qualquer outro episódio sobre como melhorar a escrita ou tratar o manuscrito antes de qualquer tentativa de publicação.

Mas, mesmo que esse cansaço tenha sido a origem das respostas grosseiras da treta, meu ponto é que não é mais um livro ruim que vai prejudicar o mercado. Não é mais um autor iludido, ou mais uma coletânea de contos paga, ou mais uma publicação por vanity press, ou mais um autor marcando 99 amigos numa publicação sobre o livro dele. “A evolução é vista como uma função da mudança da população e não da mudança do indivíduo”, e por mais bizarro que isso possa parecer, acredito que a mudança da população vai além da mudança de vários indivíduos.

Porque no mercado literário temos formadores de opiniões e tomadores de decisão, ao contrário do darwinismo “normal” (pelo menos eu não acho que apareceu uma proto-girafa com um pescoço mais longuinho e falou “oi meninas, turubom? Descobri ter pescoção é super legal, ‘tenhão’!”).

O que significa, basicamente, que não adianta bater em cachorro morto. Não adianta querer entrar em dividida com uma pessoa que obviamente não sabe o que está fazendo, é só desgaste e oportunidade de se queimar diante de outros colegas e profissionais da área. Por outro lado, usar seu poder influenciador pra divulgar um projeto legal, indicar um bom livro escrito por um colega brasileiro ou mesmo criar novos leitores é o que de fato tem poder de mudar a população estatística que abrange todos os envolvidos no mercado literário nacional.

E aí, só com a população devidamente mudada, é que a lei da selva começa a funcionar como deveria ser. Quem se adaptar, ganha um lugarzinho ao sol. Quem não se adaptar tem que mudar de habitat e, pra fechar com mais um trocadilho do reino animal, vai ter que procurar seu bando.

Zebra vai com as outras

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Obviamente fui assistir Star Wars (duas vezes e contando) e saí do cinema satisfeitíssima com o filme; consegui gostar mais ainda depois de assistir pela segunda vez. Dá pra tirar muitas reflexões sobre ele, mas a que ocupou minha cabeça assim que botei o pé pra fora do cinema foi essa que eu transcrevi em um artigo no Medium do Fale com Elas sobre Os Último Jedi e a representatividade feminina. Foi meu texto mais lido, curtido e comentado de todos os tempos… E, pra minha surpresa e orgulhinho, até o Pablo Villaça chegou nele não sei como e fez um tuíte recomendando a leitura. :)

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Janayna Bianchi Pin
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Escritora, engenheira, viajante e passeadora de lobisomens. Autora de Lobo de Rua (bit.ly/lobojana).