Ecos da Galeria #08: Possibilidades

Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta
Published in
7 min readMar 4, 2018

Não sei se você percebeu, Caro(a), mas as newsletters anteriores foram todas meio filosóficas, motivacionais, mais papos sobre a vida ou sobre polêmicas recentes do que conteúdo sobre escrita. Veja bem, eu nunca disse que o foco da minha newsletter seria escrita — mas acontece que eu simplesmente amo falar sobre isso, e já estava sentindo falta. :)

Ainda mais porque, ultimamente, ando em uma muito bem-vida lua-de-mel com meu próprio processo criativo. Sinto que, dentro do possível, estou me acertando cada vez mais com a minha rotina e com os meus jeitos de pesquisar, planejar histórias, criar personagens e ambientações, colocar as palavras no papel, revisar. E isso, obviamente, está tornando todo o processo de escrita muito mais prazeroso.

Ajuda muito estar em ano sabático, claro, assim como o fato de ter encontrado na agenda de papel um jeito extremamente efetivo de organizar meus múltiplos projetos e atividades dentro do tempo disponível. Mas a impressão que eu tenho é que os bons ventos que estão soprando agora são, enfim, os frutos dos meus esforços passados em aprender mais sobre escrita e sobre minha própria mente.

Não, eu não descobri um método milagroso de escrita — se tivesse descoberto e aplicá-lo dependesse só da minha vontade de tirar algumas das minhas milhares de ideias da cabeça, juro que já teria uma pilha de dez manuscritos prontos. Mas escrever continua sendo exaustivo, parcialmente imprevisível e, muitas vezes, frustrante. A única coisa é que, agora, parece que uma parte maior do meu esforço está se traduzindo em resultado (juro que pensei seriamente em colocar o desenho de um vetor aqui e fazer uma metáfora com leis da física, atrito e afins, mas resolvi poupar vocês desse desgosto). Em uma metáfora menos árida, é como se eu estivesse avançando mais por estar nadando a favor da corrente ao invés de contra.

Infelizmente, apesar de estar entendendo melhor o meu processo, ele não é algo que eu consiga racionalizar a ponto de destrinchá-lo em explicações super lógicas — e sinceramente acho que esse ponto nunca vai chegar. Como diria Roberta Miranda, “não sei o que dizer, só sentir”.

Ainda assim, de vez em quando um detalhe ou outro do meu processo criativo me surpreende e sobe à tona vindo lá da escuridão abissal do meu subconsciente.

Ooooooiiii! Sou um detalhe do processo criativo da Jana! :P

Recentemente, ando pensando muito sobre as múltiplas possibilidades de abordar no papel de cada um dos elementos de uma história. Entendi que gosto de plotar com antecedência os elementos em si, mas quase nunca sei de que maneira cada um deles será abordado quando chegar a hora de sair do mundo da imaginação. São essas múltiplas possibilidades que fazem com que seja virtualmente impossível que dois autores munidos de um mesmo pitch ou conceito produzam dois textos parecidos, o que dirá dois textos iguais. Mesmo no caso de dois autores com bagagem similar em termos de leitura e gênero de escrita.

Correndo o risco de parecer a Capitã Óbvia, acho que são as tendências que direcionam essas escolhas que definem o estilo de um escritor. E agora correndo o risco de parecer uma bobinha romântica, acho encantador assistir cada uma das minhas escolhas se consolidando no papel. É uma coisa meio mágica: até um segundo antes, aquela forma não estava ali e nem em lugar nenhum. O conteúdo — a ideia — estava, mas a forma ainda não existia. Claro que nem sempre a abordagem escolhida é automática ou certeira — na maioria das vezes não é. Ainda preciso parar diante do teclado e pensar em como vou colocar aquela informação no papel, e às vezes a minha primeira ideia de abordagem se mostra uma belíssima merda e eu preciso tentar mais uma, duas, três vezes até… encaixar. Acho que não tem um termo melhor pra explicar aquela sensação de que aquele trecho de texto — mesmo cru e cheio de falhas — pertence àquele lugar.

O que me faz lembrar que outra coisa que parece mágica é a percepção de que a abordagem escolhida enfim foi a correta. Parece místico, mas é ciência — é como um sentido-aranha de escritor, como as bússolas internas que colocam as tartarugas marinhas nas linhas magnéticas certas.

Como essa conversa provavelmente debandaria pra territórios muito abstratos se continuasse assim, selvagem, resolvi dar um exemplo real de um trecho do romance (um que eu escrevi ontem, aliás, mesmo dia em que escrevi esse texto). Planejando essa newsletter me dei conta que até hoje não tinha postado publicamente nem uma palavra do romance, e achei que essa seria uma boa oportunidade.

Um breve contexto sobre a cena: meus personagens, já devidamente introduzidos ao mundo sobrenatural que existe em São Paulo, estão em uma pensão não exatamente convencional na região dos Campos Elíseos. Eles não sabem exatamente que tipo de pessoa a proprietária — que tem tatuagens tribais que se mexem — acolhe e abriga no lugar.

A ideia (conteúdo) da cena, um tópico retirado diretamente do outline do capítulo:”Sobem pela escadaria até quarto de Aurora e arrimos. Vai mostrando o hotel/pensão.”

A cena:

No primeiro patamar, ela parou pra cumprimentar uma mulher que vinha pelo corredor, enxugando os cabelos com uma toalha. No andar seguinte, duas criancinhas que brincavam de pega-pega vieram correndo para abraçar as pernas de Santiago, gritando palavras em um idioma que eu não entendia — diferente das risadas de deleite que soltaram quando o homem agarrou as duas pela cintura e as carregou até o andar seguinte como se fossem dois sacos de batata. No quarto andar, paramos por uns segundos pra apreciar a música que um homem dedilhava em um instrumento exótico — assim que notei que seus dedos mal tocavam as cordas, percebi que suas pernas também mal tocavam o parapeito da janela do corredor. O quinto andar estava imerso em um breu impossível pela hora do dia, uma escuridão com cantos vivos que parecia se encerrar no corredor como se fosse uma cortina. Um enorme vira-lata preto que dormia enrodilhado bem na entrada do sexto andar levantou a cabeça quando nos viu, e tive a impressão que vê-lo fazer um gesto de cumprimento com o focinho antes de bocejar e voltar ao cochilo. No sétimo patamar, uma mulher negra regava flores que cresciam direto do carpete verde maltratado, murmurando uma música que, mesmo sem palavras, me fazia pensar em chuva, fumaça e a sensação de dormir sob um céu estrelado. No oitavo andar…

“Ei, peraí, quantos and…” Francisco começou a perguntar, e vi pela cara de Rosa e Samuel que eles também estavam se lembrando da fachada da construção, um prédio antigo com não mais do que três ou quatro fileiras de sacadinhas enferrujadas e detalhes de gesso em estilo meio rococó.

“Guenta firme, criatura, já estamos chegando!” Aurora interrompeu, balançando a mão como se a questão fosse irrelevante.

Inicialmente, pensei em narrar a subida de um jeito mais seco e, já do quarto, minha protagonista recapitularia (em primeira pessoa) as coisas pelas quais tinham passado. Mas logo depois de começar, apaguei tudo e acabei seguindo um caminho que me levou até algo parecido com o trecho acima, que depois eu incrementei um pouco e poli de levinho numa outra leitura ao terminar a sessão de escrita.

Outro autor — ou eu mesma, se quisesse dar um outro foco — poderia narrar a mesma cena de um jeito totalmente diferente.

Tipo “descobrimos do jeito mais surpreendente possível que a pensão parecia ter mais andares por dentro do que por fora, todos cheios de bizarrices. Pessoas que flutuavam, flores que nasciam direto do carpete e um cachorro que pareceu nos cumprimentar com a cabeça”, se não quisesse investir tanto na sensação de maravilhamento.

Ou “a mulher que vinha pelo corredor, enxugando os cabelos com uma toalha, parou para conversar com Aurora e mencionou coisas desconexas, como a doença esquisita que os girassóis do oitavo andar tinham pegado por causa da infestação de traçar no carpete de onde floresciam. Oitavo andar, pensei? Como assim, se por fora o prédio não parecia ter mais do que quatro ou cinco”, se quisesse uma visão mais processada sob o ponto de vista da minha protagonista. Note que eu inventei uma informação a mais (a doença dos girassóis) que antes não existia.

Esses são trechos legais também, ambos mais curtos — o que pode ser um trunfo. Mas continuo preferindo o primeiro, o que pareceu encaixar assim que terminei a escrever.

Enfim, acho que deu pra entender, né? Se me deixarem aqui, é capaz de escrever mais umas trinta versões do texto — e, ainda assim, nenhuma delas seria parecida com a que VOCÊ escreveria.

E, enquanto escrevia essa sentença aí de cima, tive uma ideia meio mirabolante para nossa troca mensal de mensagens: que tal responder esse e-mail com a cena que VOCÊ escreveria para esse tópico do outline (“Sobem pela escadaria até quarto de Aurora e arrimos. Vai mostrando o hotel/pensão.”) , isso conhecendo o contexto que dei lá em cima? Vale de um parágrafo a uma página. Pode ser um exercício legal pra testar as alternativas do seu próprio inconsciente, depois analisar que foco você acabou dando pra cena. Se você topar escrever, eu topo ler e responder. :)

Enfim descobri o que aconteceu com a Nana Ferreira, e a notícia não é das melhores. O Tempos Fantásticos desse mês noticiou um ataque orquestrado a todas as mídias interdimensionais, incluindo a Ecos da Galeria. Isso significa que a rádio ficará inoperante por tempo indeterminado, mas pelo menos Nana passa bem.

Se você quer saber mais sobre ela e ficar mais inteirado do que acontece em todos os passados, presentes e futuros possíveis, você pode assinar o periódico aqui, pagando a partir de dois reais por mês. Se você já assina o jornal e quer deixar uma mensagem de apoio pra Nana, pode responder essa mensagem que vou acionar meus contatos no Tempos pra que as suas palavras cheguem até ela.

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Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta

Escritora, engenheira, viajante e passeadora de lobisomens. Autora de Lobo de Rua (bit.ly/lobojana).