Escrever é Como Nadar

Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta
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10 min readApr 19, 2017

Ou como fazer qualquer outra coisa inata

(Confesso que, às vezes, é como tentar nadar no asfalto, mas esse artigo não é sobre isso)

Em 2015, resolvi aprender a nadar. Sempre gostei de piscina e de mar e, quando criança, cheguei a fazer alguns meses de aulinha de natação, então sempre soube nadar o suficientemente bem pra me manter acima da superfície. Mas, em 2015, resolvi nadar “pra valer”, como exercício físico rotineiro. Comprei um maiô, óculos de natação e me matriculei numa academia ótima, onde o planejamento dos treinos era personalizado e individual.

No começo, eu nadava com a performance similar a de um tijolo. Não só nadava terrivelmente mal em termos técnicos como tinha uma resistência cardiovascular pífia. No primeiro dia o instrutor propôs um teste para verificar a metragem que era capaz de nadar ao longo de 12 minutos. O teste precisou ser interrompido com tipo 2 minutos porque eu não conseguia mais colocar um braço na frente do outro; mais um pouco e eu precisaria ser resgatada da água.

Apesar dos pesares, descobri que eu gostava muito de nadar. Treinava três vezes por semana, quase sem faltar. Logo, do treino de adaptação de 600m por sessão passei a nadar 1.000, depois 1.300m, enfim 1.600m por treino. Depois de um ano, já estava nadando os quatro estilos (sim, inclusive borboleta), fazia virada olímpica e saída do bloco. Descobri, então, que não só gostava de nadar como eu era capaz de me dar relativamente bem.

Como comentei, minha técnica começou fraquíssima, praticamente nula. Mas, no começo, o objetivo era tão simples quando cumprir a metragem do treino sem ter um ataque cardíaco. Só quando alcancei esta graça, amém, foi a hora de começar a aprender a melhor maneira de nadar.

Contrair o abdome pra fazer menos esforço na pernada: quando experimentei as maravilhas dessa recomendação, nadava entoando o mantra “contrai o abdome, contrai o abdome, contrai o abdome”. Quando achava que já estava arrasando (porque de fato comecei a nadar muito melhor), meu professor disse que o abdome estava bom, mas agora eu precisaria rolar a cabeça sobre o braço se não quisesse perder tanto tempo durante a respiração. OK. Contrai o abdome, rola a cabeça, contrai o abdome, rola a cabeça. Na aula seguinte, foi a vez de descobrir que erguer muito o braço pra fora da água era tão somente perder energia em um movimento com efeito de propulsão nulo. Abdome, cabeça, braço. Os pontos de atenção se acumulavam e, a cada treino, meu mantra ficava mais complexo. Não abrir muito a braçada pra mão servir certinho com remo, virar o mais perto da borda possível pra aproveitar a propulsão na parede, jogar o quadril no ângulo e ritmo certos pra aproveitar o gingado da braçada, olhar mais pro fundo da piscina pra cabeça não gerar muito atrito… Até eu parar de nadar, no meio do ano passado, a lista estava em franco crescimento.

Foi durante os treinos, cuja paz e “solidão” eu aproveitava pra pensar sobre meus projetos de escrita, que eu enxerguei que escrever é como nadar: um amontoado de pequenas ações que constroem uma performance geral. Mais do que isso: um amontoado de ações que interferem umas nas outras, se acumulam e se anulam das mais inesperadas maneiras.

O que muda na escrita é o mantra: começar a narrativa com uma frase impactante, prestar atenção na troca indesejada de ponto de vista, manter a tensão sempre presente, acabar cada capítulo com um gancho, ser enxuto, empregar advérbios com moderação, tentar usar os cinco sentidos, pesquisar bem, criar personagens tridimensionais, só criar cenas que façam a história andar, fugir das metáforas ruins, usar o discurso livro indireto…

Alguns amigos já me censuraram pela comparação meio brega — que só de pirraça eu transformei no título do artigo — , mas assumir pra mim a existência desse paralelo foi uma marco. Por alguma razão, minha cabeça começou a reconhecer padrões que, antes, passavam desapercebidos.

Resolvi escrever esse artigo não só pra compartilhar a possibilidade maravilhosa que é encontrar sua própria comparação cafona pra se entender com a sua escrita, mas também para compartilhar, objetivamente, dez coisinhas que eu tirei dessa análise aquático-literária:

  1. A busca pela melhora da sua performance deve ser proporcional ao tamanho do seu objetivo: no horário em que eu nadava, duas das raias eram ocupadas por atletas que se preparavam pra participar do Ironman. Obviamente, o treino deles era MUITO mais intenso, assim como também era maior— imagino — a parcela de vida que cada um deles dedicava à natação e aos outros esportes. Essa consciência precisa existir na escrita também: pessoas diferentes têm objetivos diferentes, e tudo bem. O que não é muito saudável é buscar um objetivo e se iludir de que vai chegar lá sem o esforço equivalente. Pra ilustrar, na escala Jana: nadar só pra fazer um exercício aeróbico equivale a escrever pra se expressar e publicar pequenas tiragens só pra compartilhar suas ideias com os amigos, entrar em competições oficiais equivale buscar um lugar ao sol no mercado literário, treinar pra nadar uma maratona aquática por mês equivale a tentar viver da sua escrita, e treinar pra ganhar uma medalha olímpica é mais ou menos equivalente a aperfeiçoar a sua escrita em busca de um prêmio Hugo ou Nebula.
  2. Dá pra aprender MUITO observando quem já atingiu a excelência: uma das coisas que mais me ajudava na hora de aprender ou aperfeiçoar alguma coisa era observar o pessoal do Ironman na piscina ou assistir vídeos de grandes nadadores no YouTube. Assistir casualmente várias horas de competições profissionais de natação já ajuda, mas é muito mais efetivo parar o vídeo pra voltar e ver melhor uma braçada, dar zoom em um movimento de perna ou buscar aquela câmera submersa pra observar as técnicas de mergulho. Na escrita, isso corresponde a ler nossos autores preferidos com maior afinco, buscando as técnicas e os cuidados por trás das palavras.
  3. Mas observar não é tudo, precisa praticar: porque aquele movimento de cabeça pra respirar só com a metade da boca parece moleza no vídeo do Phelps, mas é totalmente diferente quando é a sua hora de fazer. E não adianta saber na cabeça o movimento certinho, tem que tentar mil vezes e quase se afogar nas mil. Além disso, você precisa descobrir o seu jeito de fazer, que não necessariamente é o jeito do Phelps. É exatamente a mesma coisa com aquela primeira sentença incrível do céu sobre o porto com cor de televisão fora do ar, que pode se tornar um começo-brega-de-descrição-do-clima se você não experimentar e falhar o suficiente antes de encontrar a metáfora que vai encaixar lindamente no seu romance.
  4. É sempre ruim no começo: na primeira vez que fiz uma saída de cima do bloco e caí de cabeça na água pra valer, achei que meus óculos tinham ido parar dentro do meu cérebro e tive certeza de que o vermelho da minha semi-barrigada ia perdurar por uma semana. Ao longo das semanas, porém, não só aperfeiçoei a técnica como também aprendi a me acostumar com a dor. Quando eu terminei minha primeira novela em inglês, por sua vez, a impressão era que meu cérebro tinha sido processado em um liquidificador. A primeira leitura beta passou por cima de mim como um trator, mas depois da quinta ou sexta revisão, eu já estava quase sentindo como se eu tivesse feito a escolha certa ao escolher escrever a novela.
  5. Você nunca vai acertar tudo: todos os anos, os recordes mundiais caem mais alguns milissegundos. Sempre é possível nadar um pouco mais rápido, um pouco melhor. O que significa que nem a pessoa com a melhor performance da terra é capaz de fazer uma prova impecável, insuperável, mesmo sabendo cada uma das técnicas e conhecendo perfeitamente o desempenho do próprio corpo. Exatamente a mesma coisa acontece na escrita: você pode saber todas as técnicas, seguir todas as dicas dos mestres, usar todos aqueles trunfos secretos… mas, ainda assim, sua escrita nunca vai ser perfeita. E tudo bem! Que atire a primeira pedra quem nunca curtiu muito aquela sentença do Neil Gaiman.
  6. Alguém de fora sempre vai ter uma visão da sua performance melhor do que você, por isso as escute: não sei se você já tentou fazer uma virada olímpica, mas a sensação de estar fazendo uma de verdade definitivamente não corresponde ao que você imagina que vai sentir quando vê alguém virando graciosamente na raia à sua frente. E isso faz com que seja difícil pra caramba analisar se você está fazendo tudo certo. Da borda, porém, dá pra ter uma noção muito mais clara do que dá pra melhorar. Na escrita, o autor é o nadador se debatendo dentro da própria obra/universo e o leitor beta e/ou editor é aquele treinador que está lá na borda, do lado de fora, vendo de camarote os seus erros e também os seus acertos. Faça um bem a si mesmo: dê ouvidos a essa pessoa querida que está disposta a se molhar pra ajudar você a chegar mais longe.
  7. Sempre existe uma modalidade na qual você se dá melhor: até por uma questão biológica, existem pessoas que se dão melhor em provas rápidas, de velocidade, e outras que preferem as provas longas, de resistência. As técnicas de braçada, respiração e etc. são praticamente as mesmas, mas muda a estratégia, o gerenciamento do ritmo e do fôlego, o compromisso de algumas coisas pra ganhar vantagem em outras, o investimento em alguns detalhes que fazem mais diferença em cada tipo de prova. Essa dinâmica funciona de modo muito parecido na escrita de ficção longa vs. ficção curta. A maneira de criar uma história e escrever é quase a mesma coisa em qualquer caso, mas o processo geral para parir cada tipo de ficção é uma arte a parte. Conhecer a si mesmo e saber assumir as facilidades em cada modalidade de escrita também é uma arte, e uma das mais importantes na hora de planejar sua trajetória no mercado.
  8. Competir pode ser um ótimo estimulante: não cheguei a participar de competições no período em que treinei natação (até porque não era a minha intenção), mas em uma ocasião os instrutores e alunos de outros horários organizaram um super-revezamento e eu fui praticamente obrigada a nadar cinquenta metros por uma das equipes. Primeiro eu quis morrer de vergonha, mas conforme a competição ia avançando e o pessoal ia torcendo pra todos os competidores, independente da performance deles, comecei a me animar e caí na piscina determinada a nadar os 50 melhores metros da minha vida. E desconfio que, de fato, foram meus 50m mais rápidos. Esse paralelo com a escrita é um pouquinho mais complicado porque escrever mais rápido não significa escrever melhor. Mas ter um prazo de entrega de um conto pra uma coletânea ou perseguir uma meta no NaNoWriMo, por exemplo, pode ser o empurrão que faltava pra você escrever mais, ou com mais constância. A gente pode sempre definir as nossas próprias metas, mas ter metas definidas por terceiros sempre dá aquele senso de urgência maior.
  9. Descansar é preciso: assim como acontece em outros esportes, é impossível ter uma performance maravilhosa — pelo menos, de maneira estável — nadando loucamente todos os dias, sem pausa. Em casos extremos, o atleta pode inclusive se machucar. Esse é mais um caso em que o paralelo com a escrita não é tão direto, mas ainda pertinente: nada, em demasiado, é bom — nem mesmo escrever. Por outro lado, forçar um pouquinho a escrita às vezes pode servir pra tirar pequenos bloqueios da frente. A lição que vale sobre descansar na escrita, porém, é saber a hora de descansar de cada projeto. Você, autor, mas também o projeto em si. Pelas internets você encontra a máxima de que é preciso deixar um original descansar por um tempo antes de revisá-lo ou reescrevê-lo, e acho que essa é uma das lições mais importantes que já aprendi desde que comecei a estudar escrita. Você pode machucar ou até aleijar permanentemente uma história ao forçar a barra, por isso deixe a bichinha descansar.
  10. E, no fim das contas, você sempre vai depender um pouquinho da sorte: o Phelps pode ser o melhor e pode estar em sua melhor forma, mas se no dia da prova ele escorregar no bloco, o nadador do lado dele pode cobrir aqueles poucos milésimos de hesitação e acabar ganhando a prova. Um nadador também pode receber aquela ajudinha de uma marola amiga, ser empurrado por uma micro-corrente de ar benéfica na hora do salto ou ser beneficiado por qualquer outra coisa imprevisível e indetectável. Claro que isso não significa que um dia um Zé Ruela vai tropeçar na beira de uma piscina e sem querer bater o recorde mundial dos 50m nado livre. Na escrita é assim também. Não necessariamente na hora de escrever a sua história, mas principalmente na hora de publicar. Você pode ter escrito sem querer sobre a mais nova moda a explodir no mercado gringo, ou alguma premissa similar àquela série bombando no Netflix. Você pode ter conhecido sem querer, em um evento, o editor que está procurando exatamente o que você quer publicar. Mas isso, obviamente, não significa que você vai sair escrevendo a esmo e sem querer vai acabar parando na lista dos mais vendidos.

E muitas outras coisas podem sair desse paralelo. Parei no 10 porque nem os leitores que se dão melhor em "leitura de resistência" iriam aguentar essa maratona.

Pra terminar, vale dizer que a também comparação funciona com outras atividades inatas — ou seja, atividades que exigem atenção, repetição (e/ou assimilação de padrões) e aprendizado de ações que não são exatamente naturais ao ser humano. É comum comparar a escrita com outras artes, e de fato muita coisa boa pode sair dessa comparação. Mas minha sugestão é sair um pouco da caixa e buscar outra atividade — de preferência um esporte ou atividade manual que exija mais do corpo do que da mente.

É uma atividade no mínimo interessante. E, na pior das hipóteses, você vai só boiar. :)

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Janayna Bianchi Pin
Galeria Creta

Escritora, engenheira, viajante e passeadora de lobisomens. Autora de Lobo de Rua (bit.ly/lobojana).