A calmaria que busca tempestade

Hugo Lloris sempre buscou os cenários mais difíceis para mostrar o quanto é bom

Vinícius Nascimento
Galo de Kalsa
4 min readDec 27, 2021

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Debaixo das traves durante quase 100 minutos, Hugo Lloris certamente teve a oportunidade de pensar em muita coisa de sua vida enquanto o Tottenham enfrentava (e massacrava) o Crystal Palace em casa neste Boxing Day, que, por coincidência, também marca a data de seu aniversário.

O último jogo, vencido por 3x0 e sem precisar fazer uma defesa sequer, foi atípico. Foi calmaria, assim como o próprio camisa 1. Deve ter sido estranho um dia sem a tempestade que ele tanto buscou durante toda a trajetória em sua vida.

No final das contas, Hugo Lloris é isso: uma grande calmaria em busca de tempestade. Ele gosta de liderar as coisas, acalmar, pegar um pênalti de Agüero no primeiro tempo de jogo eliminatório de Liga dos Campeões. Lloris sabe que tem a capacidade de decidir em ambientes caóticos. E talvez seja esse o motivo dele estar há tanto tempo no Tottenham.

A chegada dele já foi algo estranho. No último dia da janela de verão em 2012, quando já era goleiro titular e capitão da seleção francesa, dois anos depois de chegar a uma semifinal de Champions League inédita e integrar uma equipe histórica do Lyon, ele foi para o Tottenham com Daniel Levy se comprometendo a pagar 10 milhões de euros e mais cinco em metas — que foram cumpridas.

Substituiu o veterano Brad Friedel e manteve na reserva Carlo Cudicini e o brasileiro Gomes como titular. O gol do Tottenham passava por um caos. Até que a calmaria chegasse. Ele chegou, permaneceu, virou líder e lá se vão quase 10 anos de uma relação quase simbiótica.

Fora do Tottenham, ganhou o mundo. Também como líder de uma geração tão conturbada quanto talentosa na França: Pogba, Benzema, Griezmann e Mbappé são nomes que se rendem à liderança do goleiro. A capacidade de dizer que está tudo bem e as coisas vão se resolver. E garantir que tudo isso aconteça.

A menos de uma semana de poder assinar pré-contrato com qualquer clube no mundo e poucos dias após fazer aniversário, todo o mundo sabe que os 35 anos têm pouca influência no desempenho do francês. E é inerente que eu, você, ou mesmo outros clubes no mundo se perguntem: será que ele fica? No nosso caso, ainda há uma dúvida mais cruel: quem diabos vai substituir Lloris, caso ele realmente vá embora?

Ao longo dos últimos anos, o Tottenham vem dando aula de como não fazer reposição. Victor Wanyama e Moussa Dembélé são os grandes expoentes dessa afirmação, mas lá no fundo a gente sabe que Eriksen ainda não teve um substituto e Vertonghen precisou sangrar até o corpo não aguentar mais para que buscassemos uma alternativa. E Eric Dier segue como titular.

O grande medo que tenho é que, se essas reposições supracitadas já são muito difíceis, substituir alguém do calibre de Lloris será uma missão que não sei se o Tottenham está à altura. Hugo é o tipo de jogador que está além dos gramados. Capitão, referência técnica e tática. Ídolo. Muitas vezes nos perguntamos o que é que ele ainda faz aqui. Ora, o cara é campeão do mundo e líder de uma das melhores gerações da história do futebol europeu de seleções, vale lembrar

Herdeiro de uma família poderosa na França, parece que Lloris vive numa busca desesperada para ser o melhor. Podia ser um bom tenista, mas decidiu jogar bola na posição mais ingrata do campo, onde o erro tem relação direta com o fracasso. Goleiro não pode errar.

Ele virou goleiro, e goleiro do Tottenham. Um clube onde as glórias são mais passageiras do que eternas. Um lugar onde o caos impera e em que tudo de bom parece ser passageiro. É nesse lugar onde ele ficou e permaneceu. Sabe-se lá o porquê.

Com a chegada de Antonio Conte, o Tottenham caminha para ser um time e um clube mais estável, mais confiável. O treinador italiano, como os bons mafiosos do cinema, não gosta de deixar dúvidas e prefere matar logo a correr o risco de um heroi improvável ressurgir em busca de vingança. Seu jeito explosivo nada mais é do que uma busca pela serenidade. Assim como o jeito calmo de Lloris nada mais é do que o perfil de alguém que vive em busca do caos.

Será que a idade vai fazer com que o camisa 1 busque marés mais calmas? E, sendo assim, isso significa que ele pode ficar por mais um tempo e quem sabe até encerrar a carreira no Tottenham? São perguntas difíceis de responder, tão imprevisíveis quanto o reflexo do próprio Lloris debaixo das traves.

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