A ‘Era Lamela’ acabou (e foi legal enquanto durou)

Argentino se despede como garoto propaganda do limbo eterno

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readJul 22, 2021

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Brincando de Deus por uma noite, Lucas Moura virou Amsterdam do avesso. Do fatídico bumba-meu-boi até a carimbada na passagem para uma final de Champions League, aqueles foram os segundos mais importantes da história recente do clube; mas precisamente cinquenta e três desses segundos, entre o Ajax recolocando a bola em jogo no centro do campo e o árbitro Felix Brych dar o último apito da noite, muita gente se esquece.

No auge do pânico, quando o Tottenham precisava mais do que nunca manter o mundo todo longe de sua meta, a bola vinda da lateral encontrou, ainda dentro da grande área, os pés de Lamela. E a poucos instantes do cronômetro zerar, com uma classificação histórica na bandeja, chega a hora de um atleta reavaliar suas prioridades e perder qualquer senso de decência pra atrasar a construção adversária (lembra do bicão do Wanyama em Manchester?).

O argentino, portanto, como alguém que é burro demais para entender a gravidade de determinadas situações ou esperto o suficiente pra se fazer um pilar de sanidade em momentos de desespero, domina a bola na canhota e a leva (pela linha de fundo!!!) de volta para o lado do campo. Rente ao limite do campo, Erik foge do combate de De Ligt e tem caminho livre pra afastar, mas opta não só por manter a posse como também PASSAR UMA CANETA em Sinkgraven, que lhe desarma a dez segundos do fim. Puta que pariu! Então De Ligt fica com ela, tenta o cruzamento fatal, Llorente abafa e a bola volta pra quem? Erik Lamela. Puta que pariu!!! E aí, com a perna mole de quem sabe que fez merda, o argentino só controla e passa para Lucas carregar o contra-ataque adiante. Fim de jogo.

Poucos momentos definem Erik Lamela melhor do que sua aparição coadjuvante no minuto mais delicado das últimas décadas de Tottenham. O absoluto desprovimento de sensibilidade e leitura contextual e a pureza do seu incontestável talento se debatendo dentro de um crânio melado de gel. Um lance inesperado e bizarro que não ajudou em muita coisa e podia ter sido mais eficiente, mas foi lúdico na medida do possível e rendeu um friozinho na barriga que vai hoje é lembrado com certo carinho. Bom resumo de seus oito anos de casa.

A cintura de Aquiles, de Carapachay para… onde?

Eu sofro de um mal crônico que é amar jogador vagabundo. Meu maior fetiche futebolístico é mau-caratismo. Perninhas, chinelinhos, baladeiros e outros incendiários de CT que se sentem ofendidos se trotam mais de 8km num jogo são os tipos me tiram o ar. E, tá certo que Lamela não é vagabundo nato (era o garoto propaganda da alta pressão do time de Pochettino, inclusive), mas carrega consigo essa aura sudaca de baderneiro.

Muito por isso é que Erik de forma alguma sai de Londres como ídolo, mas leva uma coleção de instantes que serão lembrados com mais afeto e apreço do que nomes maiores que o dele. Até porque foi de instantes que o argentino se fez; é difícil recordar noventa minutos impecáveis, inclusive. São as provocações, os carrinhos, as penteadas, os cartões amarelos e os dois gols antológicos de letra que ficarão no portfólio.

E eu até poderia dissecar minha frustração com o camisa 11 ao longo dos anos — que nunca senti pelos seus erros ou sua falta de noção, e sim por como ele constantemente *chegava perto* de ser muito bom — , mas não há mais motivo pra chutar cachorro morto (RIP, Simba). E no fim das contas, quero (e vou) me lembrar de Lamela de um jeito positivo.

Afinal, partida após partida, ele sempre pareceu definhar num ciclo interminável de passes que não dão certo e piques que não vão a lugar nenhum, mas é justamente aí que ele aparece sozinho na direita e dá um passe na diagonal que deixa um atacante na cara do gol, ou joga metade da defesa pro lado contrário com um drible só, ou inventa um chute de letra, ou xinga Jack Wilshere de pau no cu.

Ele estava lá em todos os maiores momentos, só não importou muito

Caótico e imprevisível para o bem e para o mal. Lamela chegou com o objetivo de ser uma das caras da reformulação do clube na década de 2010, e no fim das contas não dá pra dizer que não o fez; a narrativa é que não se desenrolou como o esperado.

Talvez ninguém saiba — ou sinta — tanto o que é o clube nos últimos seis anos como ele. Porque Erik foi o Tottenham como ninguém. O nosso retrato fiel: cheio de vontade e potencial, mas nunca conseguiu transformar isso em glória.

‘Erik Lamela é nosso retrato mais fiel’, do Nino

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