Aurier, a fome e a pressa

O melhor jogador da temporada (até aqui) retrata bem o momento do Tottenham

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readJan 27, 2020

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Quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas coisas. No norte de Londres, 2013 nunca esteve tão fresco. O Tottenham vive uma crise de identidade nova e anunciada, mas em cada tentativa de digerir o que acontece em campo e nos bastidores sem suspirar em desespero, esquecemos que já passamos por isso tudo outras vezes, com nomes diferentes e cifras menores.

O que também não quer dizer que seja mais fácil. O sofrimento acostuma, mas não muda de definição no dicionário. Se agora voltamos a dissociar enquanto duzentos passes pálidos como pele de gripado são trocados de um lado para o outro na intermediária em toda santa manhã de sábado, é porque já criamos anestesia para a aflição que ainda habita.

Desde a saída de Pochettino, a sensação é de que ninguém mais se olha no olho. Abrindo mão do projeto de longa data de modo tão abrupto, o clube deixou o caos tomou conta da casa, e Dr. Ian Malcolm me ensinou que o caos é tão imprevisível quanto incontrolável. Não se sabe como as instituições infalíveis pararam de funcionar, e as forças tornaram-se fraquezas e as fraquezas se tornaram trunfos e Harry Kane e Jan Vertonghen e Heung-Min Son já não são mais os incontestáveis craques de qualquer campanha, mas tem flor que só dá assim em solo infértil.

Quem diria, hein, ladrão?

Serge Aurier já era figura problemática no clube antes de chegar. Seus incidentes envolvendo violência e homofobia em Paris fizeram a torcida, assustada como criança de fábula, criar uma barricada ideológica no Canal da Mancha. Para que fosse contratado, entendeu-se que Poch lapidaria não só seu jogo, mas sua conduta — uma retratação junto ao Proud Lilywhites em seu primeiro dia de emprego novo deu a entender que este movimento seria levado a sério.

As rédeas do argentino, porém, apodreceram seu jogo pouco a pouco. Em seus primeiros meses de Tottenham, o marfinense defendia mal, e atacava como defendia, nos fazendo sentir saudade nem de Kyle Walker, mas de Alan Hutton. Quando Trippier foi embora, então, a lateral direita virou um deus nos acuda tão tormentoso que forçamos um prodígio tardio no pobre Walker-Peters. Deu no que deu.

Agora, sob a fresca tutela de José Mourinho, Serge corre como um cão de sítio que passou a semana confinado esperando seu dono abrir a portinhola. Defende bem e ataca melhor do que defende. É mais consistente, mais inteligente, mais astuto, mais decisivo. Entre os laterais direitos, só o melhor do campeonato (e do mundo) serviu mais gols do que o camisa 24.

E chega a ser confuso notar como seu histórico de desarmes infantis, corridas tortas e tomadas de decisão horrendas praticamente desapareceu quando lhe foi permitido ser o louco que é e gosta de ser. Mourinho costuma potencializar personalidades fortes, e o fez muito bem com Aurier, que mostra mais de si mesmo em campo, fazendo por merecer (até segunda ordem) o título de melhor jogador da equipe nessa temporada.

Ver o lateral sendo o maior (ou único) expoente constante de bom futebol na atual campanha não é ruim — alguém precisa ser, afinal, pelo amor de deus— , mas é um retrato bastante fidedigno do momento que vive o clube.

Bem como o Tottenham pós-Poch, o marfinense não justifica tudo o que ele diz ser, muito menos o que nós rezamos para que ele se torne

Serge não tem a menor identificação pessoal com a equipe (como Kane ou Winks), não se encaixa no estilo de jogo que coloriu nossos bons momentos ao longo da história (como Rose ou Lamela), não representa o projeto que vinha sendo construído nos últimos anos (como Dele ou Sánchez) e, é claro, não passou um mês sequer sem flertar ou ser flertado com uma possível saída.

Serge é, na verdade, um plano C que travestimos de plano A para justificar falta de planejamento, falta de investimento e falta de opção. No fim das contas, até é um jogador de grande relevância, mas não tem metade da envergadura de seus principais concorrentes mundo afora. E é bom, mas não tanto. E tem potencial, mas já passou do ponto.

Com a identidade perecível de um espírito cada vez mais mercenário, o Tottenham de Mourinho se escora na passada descontraída do marfinense para não afundar. Procurando atalhos para conquistas, como quem tem pressa mas não tem fome, o time apaga gradativamente as linhas que Pochettino desenhou e nos carrega de volta para quando nossa realidade sambava entre contemplar a mediocridade e regar a ilusão de um ano que vem melhor do que este.

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