#BackPoch: Pelo respaldo à revolução

“Se o presente é de luta, o futuro nos pertence”

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readAug 1, 2019

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Ainda acredito com uma frouxa convicção que a frase de Pochettino tenha simplesmente sido mal colocada. Não seria a primeira (nem a última) vez que o professor usa as palavras erradas para dizer a coisa certa ou fala em inglês uma frase pensada em espanhol. Outra suspeita forte como uma folha sulfite me faz crer que a resposta só tenha sido mal interpretada. Não seria a primeira (nem a última) vez que um jornalista entende — ou escolhe entender — a mensagem que suscita o máximo desconforto no cabeçalho.

Perguntado anteontem sobre sua posição no clube em relação ao seu poder de influência em decisões contratuais e de transferências, o argentino foi no mínimo enigmático na resposta.

“Eu não tenho poder sobre isso [negociações]. Eu não sei nada sobre a situação dos meus jogadores, só estou treinando-os e tentando tirar o melhor deles.

As coisas podem ou não acontecer — vender ou comprar jogadores, estender ou não estender contratos -, mas isso não está nas minhas mãos. Está nas mãos do clube, do Daniel Levy.

Talvez o clube precise mudar o nome da minha função, porque meu trabalho é treinar o time.”

As questões (e a polêmica) foram pautadas na diferença entre um manager e um head coach no futebol europeu — impossível de traduzir, já que aqui a diferença entre ‘técnico’ e ‘treinador’ não é assim tão semântica e quase todo o balaio destes profissionais brasileiros trabalha numa zona cinza.

Pra contextualizar, o manager é um técnico que também tem poder sobre as negociações da equipe; define alvos que cabem em seu estilo, escolhe quem pode sair, decide quem precisa renovar e aparece na salinha do financeiro tanto quanto um diretor de futebol. Já o coach é puramente treinador; não põe a mão nos negócios e é encarregado somente de administrar e aperfeiçoar os aspectos físicos, táticos e mentais da equipe que lhe é cedida.

Se você entrar nesse exato momento no site oficial do clube, o Mauricio Pochettino estará sob o título de manager; uma pequena imprecisão (outrora discreta) de acordo com a estratégia organizacional do clube. Afinal, não é novidade que quem dá as cartas em todos os trâmites de atletas é um pequeno clã encabeçado pelo presidente (Daniel Levy) e formado pela secretária de futebol (Jennifer Urquhart), a diretora de futebol (Rebecca Caplehorn), a diretora executiva (Donna-Maria Cullen) e o diretor financeiro (Matthew Collecott). Mas a resposta do argentino na coletiva dá a entender que no mínimo existe um desconforto por sua parte em não ter um lugar à mesa.

Reportadamente, Pochettino mudou seu cargo de head coach para manager ao renovar contrato em 2016, mas parece que o job description ainda não mudou. Alô, Vagas Arrombadas!

De Guardiola e Klopp a Kovac e Ten Hag, a imensa maioria dos treinadores dos principais clubes da Europa trabalham sob a alcunha de managers, não coaches. A renovação estrutural que se desenha nesta janela no elenco do PSG, por exemplo, é liderada por Leonardo (diretor de futebol), mas em total sintonia com Thomas Tuchel. Lucien Favre molda seu grupo aurinegro sempre a partir de uma constante comunhão com Michael Zorc (diretor esportivo). No Tottenham, apesar da relação que transborda confiança e apreço entre Levy e Pochettino, existe um distanciamento operacional excessivo que deu abertura para esse debate.

De novo, há quem prefira crer — como eu — que as palavras do comandante não sejam de descontentamento com sua posição, mas sim com o insuportável assédio da imprensa com relação a esse assunto (que se estende há pelo menos dois anos).

A resposta pode se resumir a um homem se colocando em seu lugar, apontando a responsabilidade pelas negociações para onde ela de fato deve ser apontada, ao melhor estilo “essa pica não é minha”. Mas é difícil imaginar que Poch não prefira trabalhar tendo mais controle sobre seu material humano — ainda mais num contexto onde qualquer outro clube poderia o oferecer essa oportunidade sem titubear.

O incômodo com o incômodo instigou a torcida a se manifestar em apoio ao responsável pelo time estar onde está — e você pode argumentar que este seria Daniel Levy, mas, bem, nenhum dos dez treinadores que o careca contratou antes de apostar no atual dono do cargo foi capaz de protagonizar tamanha revolução.

Não questione, confie

Qual é o âmago do movimento #BackPoch? Kane, Alli, Dembélé, Alderweireld, a retomada do norte de Londres, o fim dos mil tabus, o abraço no Wembley, a temporada invicta no White Hart Lane, a possante pressão alta em 2016, as infernais laterais de 2017, os êxtases em Manchester, o baile no Real Madrid, a nova e sutil arrogância, os desesperos sorridentes de sentir uma corrida pelo título e uma final da Champions League. Nada disso seria verdade se nosso caminho não se cruzasse com o de Mauricio Roberto Pochettino.

Numa história que teve Keith Burkinshaw, Arthur Rowe, Bill Nicholson e Frank Brettell, Poch tem cadeira cativa no hall dos melhores treinadores do Tottenham (e pra mim é top 3 sem margem para disputa). Poucos profissionais foram capazes de atingir um nível tão alto de excelência, eficiência, beleza e principalmente consistência, ainda mais sem deixar de seguir à risca a filosofia de jogo do clube. Seus feitos se tornam ainda maiores se colocados em perspectiva com relação às décadas de ouro do time no século passado, considerando as evoluções técnicas, táticas e físicas que se desenharam no esporte.

O argentino é o maior e mais distinto responsável por absolutamente qualquer passo adiante que o clube tenha dado nos últimos cinco anos — tanto que sequer preciso me estender nas razões. E os últimos cinco anos, para o Tottenham, certamente foram os mais importantes da última década. E a última década, para o Tottenham, certamente foi a mais importante entre as últimas duas ou três.

Fica claro a partir disso que a situação do mister à frente do clube deveria ser balizada em certezas, mas a instauração e a desesperada disseminação do #BackPoch fazem crer que quem impera são as dúvidas. Ele continua? Não continua? Tá feliz? Tá triste? Vai continuar evoluindo? Vai sentar no comodismo? Vai sair da fila? Vai ficar mais forte? Terá mais poder? Vai comer quieto?

Mauricio tem total confiança de quem o emprega, mas ainda precisa de mais respaldo. Precisa ser ouvido, considerado e consequentemente creditado. Um apoio mais conciso e inclusivo por parte da diretoria é só o que resta para que o projeto torne-se imparável.

“Lutam melhor os que têm belos sonhos”

O Tottenham chegou nessa temporada de máxima afirmação para a Inglaterra, a Europa e o mundo graças à sinergia entre diretoria e time. Acontece que trabalhar para maximizar recursos escassos — em bom português, tirar leite de pedra — não é mais o jeito que essa banda toca. O ritmo agora é outro; é preciso acompanhar a passada de quem sabe dançar a dança. Por isso, mais do que nunca, a interação entre quem comanda e quem bota em prática precisa ser saudável.

A contratação de Ndombele, por exemplo, é a prova de que o clube não está (ou não estava?) acomodado. É de comum entendimento que abrir os cofres — mesmo que com a usual parcimônia — tornou-se um movimento vital para manter o nível desejado. Mesmo assim, a estagnação pós-chegada do francês deixou incertezas que comprometem as expectativas para uma temporada tão crucial. Mas quem — se não um manager — pode pressionar a diretoria para mostrá-los que a conta ainda não fechou?

Que não haja retraso ou descaso que faça Pochettino reviver em nossas cores um dos mais célebres dizeres de seu venerado compatriota.

“Muitos me chamaram de aventureiro — e o sou, só que de um tipo diferente: dos que entregam a pele para provar suas verdades”.

Ernesto Guevara

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