Balde de água morna

Mais uma odisseia do clube de derrotas gloriosas

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readNov 7, 2023

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Era a derrota mais anunciada da história das derrotas anunciadas. Tonto fui eu que duvidei da inabalável sistematicidade da vida quando Kulusevski abriu o placar logo cedo. O Tottenham não tinha como lutar contra o que alguma grande figura onipotente, seja ela qual for, já tinha deixado escrito num livro sagrado, numa parede de caverna, num templo submerso ou numa constelação qualquer.

O único time invicto do campeonato. Pochettino de volta. Três pontos para assegurar a liderança isolada. Gareth Bale no estádio. Fechamento da rodada onde quase todos tropeçaram. A porra do Chelsea em seu estado mais meia-bomba da história recente. Romero expulso. Maddison fora. Van de Ven fora. Udogie expulso. Honestamente, o que dá pra fazer? Quem acreditou nessa vitória mereceu morrer de dor de cabeça.

Por isso que eu taquei duas Novalginas goela abaixo só depois do QUARTO gol deles, tendo finalmente aceitado que esse Tottenham não é capaz de dobrar as regras do universo. Talvez seja, tendo o time completo. Veremos.

A partida dessa segunda-feira foi uma das experiências mais absurdas que eu já tive em quase trinta anos de vida com futebol. Não pela montanha russa de sensações — essa, no dicionário lilywhite, significa “qualquer manhã de sábado” — , mas pela truculência com a qual cada sensação foi repassada e recebida. Afinal, os cinco gols anulados e os cinco gols validados ao longo da tarde, que seriam manchete em qualquer outra partida da história, foram nota de rodapé.

O primeiro tempo foi mais humano, intricado, agridoce. Clássico de almanaque. Excitação, descrença, raiva, ânsia e bola parada. Demorou tanto que pareceu um jogo inteiro. E talvez tenha sido de fato, uma vez que tudo que veio depois não teve roteiro, guia ou ensaio.

O segundo tempo, por sua vez, foi mais primitivo, agudo, cru. Ao ver Skipp entrando em campo, repassando a instrução de Ange para o time subir ainda mais a linha de marcação (com pelo menos meia hora de bola pra rolar), meus próprios pensamentos não tinham mais idioma — eram grunhidos absolutamente ininteligíveis. O celular no modo avião. As luzes em volta apagadas. Calor da cintura pra cima, frio da cintura pra baixo. A cabeçada torta do Bentancur passando a um fio da trave me jogou de volta pro útero da minha mãe. Não conseguia formular uma frase completa. Só gesticular e balbuciar, como eu imagino que faria o pobre Homo Erectus que, no dia após descobrir o fogo, descobriu a regra do impedimento.

Depois do apito final, demorei alguns minutos pra voltar à mim (ligar o celular, acender as luzes, trocar a bermuda por uma calça e dizer em voz alta “que time de filho da puta”, encarando a imagem do Sterling abraçando o Pochettino na TV) e, quando o fiz, não estava triste. Estava em choque, desconcertado, meio mole das ideias e torcendo pra Novalgina fazer efeito. Talvez com raiva, ainda eufórico, mas não triste. Nada triste. Abri dois sorrisos ao longo da noite, inclusive, lembrando que foi Eric Dier quem ficou a uns cinco centímetros de anotar o gol de empate daquela odisseia.

Eu, por muito tempo, tive a mais absoluta certeza de que Mauricio Pochettino era a personificação mais fiel possível do clube. A narrativa, o símbolo e tudo mais, sabe? A gente, por gostar do Tottenham, também gosta de acreditar nessas coisas. E ontem, Ange Postecoglou não só se prontificou a tomar essa posição de garoto propaganda do lema de Danny Blanchflower, mas o fez dando outra dimensão ao imaginário coletivo do clube.

A palavra “ética” vem do grego (!!!) “ethos”, que significa modo de ser. Um conjunto de valores que orientam o comportamento do homem em relação aos outros homens na sociedade em que vive. Ou seja, ética é a forma que o homem deve se comportar no seu meio social. E no Tottenham, essa ética sempre esteve intrinsecamente ligada ao conceito de glória, seja vencendo ou perdendo — mas sempre perdendo mais do que vencendo.

Tem menos a ver com o que é feito e mais a ver com como é feito. Por isso, apesar de ter rendido os três pontos, o hat-trick mais AGUADO da história da Premier League não terá lugar na prateleira da atuação titânica de Guglielmo Vicario. Por isso, apesar de ter rendido os três pontos, a abordagem de Poch com as bolas longas não será falada como a coragem épica de Ange com as linhas altas de dois homens a menos. Por isso a arquibancada cantou alto em vez de vaiar. Por isso eu não fiquei triste. Porque o clube de derrotas gloriosas agora tem um novo acontecimento para ser recordado (com muito carinho e cuidado) como um dos mais icônicos de sua história recente.

A goleada sofrida pelo Chelsea foi um balde de água morna. Um susto que chegou a ser gostoso na medida do possível. Deixou nossos sensos em alerta, mas não nos acordou do sonho que é ver esse novo time descobrindo e ostentando sua identidade.

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