Com ferro será ferido

Não há jeito melhor de se ganhar um grande jogo

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
3 min readFeb 3, 2020

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“Quando você gosta do que você faz, você não perde o cabelo”, disse Mourinho há algum tempo atrás, se referindo a seu então arquirrival, Pep Guardiola. A relação vulcânica entre os dois maiores treinadores deste século que já eruptiu em desgosto, hoje adormece em cordialidade, mas a máxima ditada pelo gajo não mudou.

Guardiola é tão obcecado, perfeccionista e audacioso porque gosta mais de vencer do que de jogar. Ele não transforma times perdedores em times vencedores, e nunca o fará (mas continuem com aquele papo de “põe esse careca no Vitória pra ver se é bom mesmo!”, é bom pro coração). Ele faz times vencedores vencerem ainda mais.

O Manchester City de hoje, então, é uma instituição que combina com sua personalidade. Não à toa cada um de seus torcedores usa a sala de troféus como escudo. Se não é vitória, é fracasso, e este deve ser evitado a absolutamente todo custo. Por isso que bater neles é tão gostoso.

Já tinha quase um ano que um grito de gol não saía daquele jeito, e ser feliz assim faz falta. A final anticlimática em Madrid deu o tom pra tudo o que veio depois, como se ainda estivéssemos jogando aquele mesmo jogo nos dez meses seguintes.

As lesões de Lloris, Kane e Sissoko, a conduta de Son, a fase de Alderweireld e a lerdeza de Dele foram só alguns dos fatores que nos afogaram por inteiro em apatia. Nem a chegada de Mourinho, nos primeiros momentos, renovou o ânimo para uma temporada que poderia ter dado como acabada antes mesmo do réveillon.

Ao longo do primeiro tempo contra o City, o silêncio nas arquibancadas anunciava mais um tropeço que, pelo costume, nem traria tanta vergonha. O Tottenham muitas vezes é conivente com frustrações. Só é importante não abusar, como fizeram Mike Dean, Kevin Friend e Pep Guardiola, porque a bola cobra.

Nossa resiliência foi chave. Num momento tão adverso, depois de duas ou três decisões assustadoramente absurdas por parte da arbitragem (e da cabine do VAR), um milagre do capitão que insistimos em subestimar e zero chutes ao gol adversário, o estádio se ensandeceu para dar voz à certeza compartilhada de que o jogo deveria ser nosso.

Depois da surreal não-expulsão de Sterling, não havia dúvida de que ganharíamos, só de como ganharíamos. E, meu deus do céu, não há jeito melhor de ganhar um jogo desses do que vendo Erik Lamela lambendo a bola com a sola dos pés na cara de um brinquedinho de 90 milhões de libras de um árabe megalomaníaco.

Ser Tottenham é uma sorte que me dá a chance de provar o espectro mais completo de sensações e entendimentos que o futebol oferece. A forma que a vitória de ontem foi desenhada fez cada uma das partidas do último ano, construídas com insegurança e passividade, serem sugadas para aquele canto escondido da memória no qual tudo parece que passou voando.

O poder do êxtase é fazer tudo o que está ruim se tornar bom por um tempinho, tempinho que a gente ama mais do que qualquer troféu, coisa que Guardiola nunca vai conseguir entender.

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