Danny Rose e o valor da identidade

Um caminho nada ortodoxo para a idolatria

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
5 min readSep 4, 2019

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Quando o Tottenham se lançava adiante em campo, lá pra 2016, com apetite de guerrilha, eram as alas que carregavam o fronte. As duas beiradas, que por anos (ou décadas) estiveram mais do que carentes de brilho, tiveram em Rose e Walker — como a Lua e o Sol — sua maré cheia. E dava gosto de ver. Agrediam os vãos opostos unindo a fúria à delicadeza, como flechas.

Por tempo antes e tempo depois não houve nada igual. E Danny, em especial, capitalizava o sentimento de ser incomparável. Para mim, era a representação viva daquele momento, do que eu queria ver, do que aquela equipe era e do que o clube significa. Desde que voltou de empréstimo, o lateral esquerdo trouxe a campo aquela gostosa insolência que deu tom à equipe que encantou nos anos seguintes. O camisa 3 guardava atacantes e bombardeava defensores como se desmontasse bonecos de brinquedo.

Seu peito estufado foi pioneiro, antes que Dele viesse a encarnar o espírito da mais refinada arrogância

Foi logo ao fim dessa maré que a água, de repente, ficou escura. Foi estranho porque eu não havia sentido nada além de um amor incontrolável por Danny Rose até aquele mês de agosto de 2017, mas naquela entrevista imortal, orquestrada como uma faísca para um golpe político, ele expôs a face do Tottenham que todo mundo (lá no fundo) sabia que existia, mas ninguém queria se dar o trabalho de ver. Falou sobre os salários incompatíveis, o nível descomedido de exigências físicas, a bizarra política de transferências (ok, Google) e a insatisfação que não lhe era exclusiva.

Doeu. Ali, para mim — e de certo para muitos — , Rose virou um pária. Porque, porra, ele era justo um dos com mais tempo de casa. Se o que estávamos fazendo era uma revolução, como um dos nossos símbolos ousaria se rebelar? Doeu bastante. E a merda maior era saber que, no fundo, ele estava certo. Afinal, sabemos que o futebol já não é o mesmo de antes, mas renunciamos a sensatez para defender o que achávamos bonito: o nosso time que não compra caro, que não paga absurdos, que não recruta estrelas, mas briga no alto com a elite.

De qualquer forma, a impressão geral era de que o lateral estava cavando sua saída (provavelmente para Manchester), não só expondo as falhas do sistema de Levy e Pochettino. Até porque, depois dos relatos, não existia mais clima para sua permanência. Acontece que a vida real não é que nem Football Manager (né, seu dinamarquês filho da puta) e sabe-se lá como o camisa 3 acabou ficando no elenco para a temporada. Depois, Pochettino abafou a fumaça e o colocou nos planos do time principal, sem afastá-lo do grupo ou rebaixá-lo para o sub-23.

Now who do you admire?

Mais duas ou três janelas de transferências se passaram com o já experiente defensor figurando nas principais manchetes do mercado. Duas ou três janelas de transferências sendo de fato assediado (e, há quem diga, oferecido) por outros clubes. Duas ou três janelas de transferências sendo considerado carta fora do baralho. Duas ou três janelas de transferências, por fim, irritando as casas de apostas ao manter-se no onze inicial sem dar muita margem para discussão.

Em todo esse tempo, era de se imaginar que Danny faria corpo mole, não jogaria com as ganas costumeiras ou faria pouco caso de situações de risco pensando em se preservar. Mas ocorreu o contrário. E, pensando bem, não surpreende.

O Tottenham de 2019 olharia para o Tottenham de 2007 (e vice-versa) como quem tem uma interação forçada e desconfortável com o primo de terceiro grau que mora em outro estado. São universos diferentes, modelos diferentes, estruturas diferentes, em contextos diferentes e com ideias diferentes. As cores, porém, mantiveram-se as mesmas. Por isso Rose também não mudou.

Quase uma década depois de sair jogando em sua primeira partida oficial pelo clube e decidir um North London Derby em casa, Danny protagonizou uma atuação visceral no Emirates para decidir outro. E, tudo bem, este primeiro ponto alto da temporada tardou a chegar, mas não é como se esperasse dele a regularidade de um galático — apesar de que costumo dizer que jogava como um quando ainda era careca. Ele não é (mais) parte da mais alta prateleira do material humano do esporte. A idade galopa e os quilos a mais batem com força. Mas não há força no mundo que contenha seu ímpeto — e, vai, considerando a situação, é o que nos basta.

É incrível tomar consciência de que seus mais memoráveis cortes em diagonal de fora para dentro que roubam a alma do pobre coitado que é atravessado foram performados depois das grandes polêmicas. Rose ainda inspira porque joga inspirado, e joga inspirado porque ama o clube que defende. A identidade que carrega faz de cada arrancada uma pequena celebração.

Sempre que está em campo é um dos poucos que deixa claro que entende o que a camisa significa. Referencial incontestável de energia, entusiasmo e entrega — mesmo que nem tanto de disciplina, autocontrole e passes curtos. Se finge de volante quando necessário, volta e meia se traveste em ponta e ainda gruda como um carrapato nos alas opostos onde quer que seja colocado. Aí, além de tudo, mantém a postura altaneira fora do gramado; tomou frente com discursos potentes em discussões sobre racismo e depressão no esporte. Profissional e humano para se ouvir e tomar notas.

A identidade prevalece e tem valor inestimável

O lateral esquerdo é a mais fiel personificação do clube. Caráter forte, identificação com a comunidade, autoconsciência singular e autenticidade indestrutível. Um edifício de Gaudí no meio do subúrbio das casas iguais. Ao mesmo tempo, é refém de certos pragmatismos, coleciona patacoadas e ainda não sabe-se dizer se seu auge foi plenamente atingido. Vive em crise com a própria incompreensão.

Aos 29 anos, ele não tem muito mais a mostrar, mas você há de agradecer por ter visto seus melhores momentos e acompanhar as etapas finais de sua carreira (ainda) pelo time que ama. Rose é um em um milhão — sorte grande a nossa em ter uns e uns milhões no grupo, inclusive — , então não maltrate quem compartilha da sua identificação com o branco e azul. O bloqueio de cabeça na pequena área do Emirates é prova de que o velho garoto merece mais pelo que construiu e segue construindo.

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