Diego, em branco e azul marinho

As histórias de Maradona com o Tottenham

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
5 min readOct 30, 2019

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Iluminando a noite

Era a primeira noite de maio de 1986. Bem pouco antes de protagonizar uma das maiores e mais icônicas performances da história do esporte, Diego Armando Maradona trocou o azul celeste por azul marinho.

Osvaldo Ardiles, campeão do mundo em 78 e ídolo lilywhite da década seguinte, se despediu do clube antes de sua mudança para o PSG com uma partida festiva. Sob as luzes do White Hart Lane, 30 mil pessoas assistiram à pelada disputada contra a Inter de Milão, vencida pelos Spurs por 2–1 — Clive Allen e Mark Falco marcaram.

Maradona foi convidado por seu ex-parceiro de seleção e dividiu vestiário com outros grandes atletas, como Ray Clemence, Graham Roberts, Gary Mabbutt, Chris Waddle e o craque Glenn Hoddle. Este último, inclusive, era o dono da camisa 10 na época, mas em gesto solene, cedeu seu número para o argentino e vestiu a 11 por uma noite — nada que diminuísse sua grandeza com a bola nos pés.

Maradona e Ardiles ainda em Heathrow

Com Maradona e Hoddle na mesma equipe, a bola viu cada nó de sua costura se arrepiar de tanto querer se dividir em duas, para agradar e ser agradada em medidas iguais. O meia inglês teve, por uma noite, um companheiro de posição que não só nivelasse sua técnica, mas também fizesse sua genialidade parecer mais terrena, menos surreal.

Na noite que era pra ser de Ossie, todos os olhos estavam voltados à canhota do Pibe quando a bola rolou. Diego, claramente poupando-se para a Copa, jogou brincando; não correu tanto, mas sujou a camisa e fez seu espetáculo, mostrando relances da divindade que já carregava. Embaixadinha, passes de calcanhar, chapéus, adversários esparramados no chão e um cruzamento de bicicleta deixaram o estádio em êxtase absoluto.

Só faltou o gol. No placar, Maradona passou em branco — o que não atrapalhou a festa de forma alguma. Nada tiraria o entusiasmo da gente que, ao ver o divino a olho nu, vestindo branco e azul em pleno White Hart Lane, sentiu-se criança; vulnerável e inocente.

Depois do amistoso, o então repórter Martin Tyler perguntou a Diego (que teve Ardiles como intérprete e tradutor) se ele teria algum problema em enfrentar a Inglaterra na Copa do Mundo, diante da recepção carinhosa que recebeu no norte de Londres. El Pibe respondeu que não haveria problema e até se mostrou surpreso com a pergunta; “Em que sentido seria o problema?”, indagou. Uma premonição discreta.

Flutuando, em apoteose, contra a Inglaterra

Caçando Deus

Meses depois do amistoso, o então presidente do clube, Alan Sugar, ofereceu 10 milhões de libras para tirar o craque argentino do Napoli — proposta prontamente recusada pela diretoria do time italiano. Sugar queria insistir e aumentar o valor, mas Irving Scholar, principal investidor do clube na época, acreditava não valer a pena tirar mais tantas libras do cofre pra bancar Diego.

Dizem que Scholar foi mão de vaca de propósito, justamente por conta do que Maradona havia feito com a Inglaterra no Estádio Azteca. Alegam também que o investidor não gostava de argentinos, tanto que foi sob sua gestão que Osvaldo Ardiles se despediu do clube.

Acontece que, anos depois, Ossie voltou aos Spurs com status de ídolo para uma (breve e frustrada) passagem como treinador. Em 1993, teve nomes como Sheringham, Mabbutt, Anderton e Barmby em suas mãos, mas quase foi rebaixado em sua primeira temporada no comando. Para se manter nas rédeas da equipe, o argentino precisava de um trunfo.

Como treinador, Osvaldo foi um grande ex-jogador

Quem conta o plano de Ardiles é o próprio Teddy Sheringham:

“Como capitão do time, sempre me dei bem com ele [Ardiles]. E, num dado momento, ele chegou para mim e disse: “Teddy, quero sua opinião. Estou pensando em contratar alguém.” Eu, tranquilamente, perguntei “diga, quem você quer?”, e ele prontamente respondeu “Diego Maradona”. Eu questionei “Ossie… Isso é verdade? Sério? Você está louco?” e ele só disse “Sim, estou negociando com ele.” Fiquei atônito. Só consegui dizer algo como “então vai! Contrate! Vai ser maravilhoso jogar com ele!” e depois fiquei esperando notícias.

Três dias depois da conversa, o treinador reapareceu dizendo que havia decidido não contratar Diego em função das inúmeras polêmicas pós-embaraço na Copa de 94.

Com isso, Ossie preferiu ir atrás de outro grande vencedor de Copa do Mundo. E mesmo que não tivesse sido Maradona, Teddy ficou mais do que contente com o atleta escolhido para ser seu par:

“Não podia acreditar que Jurgen [Klinsmann], que tinha ganhado a Copa do Mundo quatro anos antes, tinha vindo para o Tottenham. E aqui ele foi um fenômeno.”

Ardiles, no fim das contas, acabou sendo demitido antes da metade do campeonato — sua carreira como treinador definitivamente não fez jus à sua jornada dentro dos gramados. Klinsmann virou artilheiro e ídolo em proporções meteóricas, Sheringham se manteve como o grande craque dos Spurs até sair para virar herói no Manchester United e Maradona, por fim, voltou à Bombonera em 1995 para encerrar a carreira.

Poderiam ter dois argentinos nessa foto, quisesse o destino

Criando laços

A história do Tottenham tem uma conexão graciosamente especial e com a Argentina. Se os pés de Ardiles e Villa foram capazes de dividir corações em plena Guerra das Malvinas, o cérebro de Pochettino ressuscitou este excêntrico carinho com os portenhos.

Por estes fios soltos, a história de Diego voltou a trombar no Tottenham em 2018. Novamente a convite de Ossie, que hoje é embaixador do clube, El Pibe voltou à Londres para mais uma partida — dessa vez, das tribunas, viu Harry Kane e companhia estraçalharem o Liverpool por 4–1, no Wembley.

Andou pelos vestiários, cumprimentou titulares e reservas e conversou com capitães e conterrâneos antes de subir para as cadeiras acompanhado de Ardiles, bem como em seu desembarque no aeroporto de Heathrow, em 86.

Saudado pela comissão técnica e aplaudido em pé pela torcida, Maradona reverenciou as arquibancadas como se fosse tivesse jogado nos Spurs por mais de uma noite. Foi tão grande aquele primeiro de maio que parece natural se deixar cair na ilusão de que não foi uma partida só.

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