Elefante de cristal

Saída repentina de Wanyama pinta o cenário de desequilíbrio do clube

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
3 min readMar 6, 2020

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Na África subsaariana, elefantes são considerados um ponto de equilíbrio natural. Qualquer pequeno movimento do maior mamífero terrestre é capaz de alterar fisicamente o ambiente ao seu redor, abrindo um leque de ecossistemas para outras espécies aflorarem.

No Quênia, não à toa, tornaram-se ícones culturais justamente por serem os engenheiros e arquitetos ecológicos da região. A presença da espécie é a pedra fundamental da fauna local; a prosperidade e o equilíbrio de seu entorno estão intrínsecos à sua existência.

Mal dá pra acreditar como fica fácil traçar esse paralelo. Se o Tottenham era dono do melhor futebol da Inglaterra — que foi ofuscado pelo pragmatismo do Chelsea — , o queniano Victor Wanyama era o elefante responsável por sustentar sua constância. E se os devidos louros não lhe foram dados, é porque no meio do caminho tinha o auge de N’Golo Kanté. Acontece.

Victor Wanyama subindo para a eternidade na última tarde de futebol do White Hart Lane

Em 2017, ninguém no mundo foi mais possante do que Wanyama. Onipresente, era quem mandava prender e mandava soltar no meio de campo. Ao lado de Dembélé, construiu uma barricada intransponível na beira do primeiro terço do campo. E engana-se quem limita sua influência ao poderio físico; é a mesma coisa com os elefantes, absurdamente inteligentes, mas costumeiramente resumidos pelo tamanho descomunal. O volante é sábio como poucos na posição, antecipando, bloqueando, desarmando e criando com facilidade indescritível.

Autor de um dos gols da despedida (com vitória) do antigo White Hart Lane — logo, eternizado na história do clube — , o pupilo de Pochettino vivia presente na construção e *principalmente* na destruição de tudo o que acontecia dentro do gramado. Incansável, autêntico, espirituoso e protagonista. Até em seus últimos dias de grande jogador, inventou um tirambaço inesquecível em Anfield para fazer-se bem lembrado num jogo épico.

O que ninguém sabia é que Victor era um elefante de cristal, e seu corpo edificado em pura potência se estilhaçaria por completo no primeiro saracoteio. Depois de dois anos de auge incontestável, e no momento de realmente tomar conta do meio de campo da equipe, seus músculos se esfacelaram de fibra em fibra. Pouco sobrou do jogador que era.

Vestindo as cores do Montreal Impact, Wanyama será guiado pelo maior ídolo do seu ex-rival

A decadência física de Big Vic foi um efeito dominó com muitos ‘e se’ no Tottenham. Reconstruído, o queniano serviria para dar liberdade para Lo Celso atacar mais e até desafogar a responsabilidade de Winks — que não foi e nunca será um primeiro volante. Seria também a grande vértebra defensiva da equipe, garantindo mais espaço para Aurier avançar tranquilo e evitando que os zagueiros (principalmente Sánchez) precisem desmontar tanto a linha de retaguarda ao se anteciparem em desarmes e interceptações. Em cacos, porém, o atleta de nada nos serve; fato atestado com sua saída a custo zero para o Montreal Impact.

Wanyama chegou ao Tottenham em 2016, após 97 jogos e três temporadas defendendo o Southampton — onde conheceu Mauricio Pochettino, inclusive. O queniano deixa o norte de Londres após os mesmos 97 jogos que disputou pelo time praiano, mas tendo duas temporadas a mais na bagagem: indício mais claro possível de sua infeliz incapacidade em lidar com as constantes lesões.

O número de jogos soa estranho porque nos pinica a cabeça jurar que seriam muitos mais. Os meses de volante de elite passaram rápido e acabaram até antes do suposto auge da equipe. Agora, sem nosso elefante, seguimos adiante sem a menor perspectiva de reencontrar o equilíbrio natural, numa paisagem um pouco mais feia e inabitável do que a que ele nos ajudou a ter.

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