Elefante de cristal
Saída repentina de Wanyama pinta o cenário de desequilíbrio do clube
Na África subsaariana, elefantes são considerados um ponto de equilíbrio natural. Qualquer pequeno movimento do maior mamífero terrestre é capaz de alterar fisicamente o ambiente ao seu redor, abrindo um leque de ecossistemas para outras espécies aflorarem.
No Quênia, não à toa, tornaram-se ícones culturais justamente por serem os engenheiros e arquitetos ecológicos da região. A presença da espécie é a pedra fundamental da fauna local; a prosperidade e o equilíbrio de seu entorno estão intrínsecos à sua existência.
Mal dá pra acreditar como fica fácil traçar esse paralelo. Se o Tottenham era dono do melhor futebol da Inglaterra — que foi ofuscado pelo pragmatismo do Chelsea — , o queniano Victor Wanyama era o elefante responsável por sustentar sua constância. E se os devidos louros não lhe foram dados, é porque no meio do caminho tinha o auge de N’Golo Kanté. Acontece.
Em 2017, ninguém no mundo foi mais possante do que Wanyama. Onipresente, era quem mandava prender e mandava soltar no meio de campo. Ao lado de Dembélé, construiu uma barricada intransponível na beira do primeiro terço do campo. E engana-se quem limita sua influência ao poderio físico; é a mesma coisa com os elefantes, absurdamente inteligentes, mas costumeiramente resumidos pelo tamanho descomunal. O volante é sábio como poucos na posição, antecipando, bloqueando, desarmando e criando com facilidade indescritível.
Autor de um dos gols da despedida (com vitória) do antigo White Hart Lane — logo, eternizado na história do clube — , o pupilo de Pochettino vivia presente na construção e *principalmente* na destruição de tudo o que acontecia dentro do gramado. Incansável, autêntico, espirituoso e protagonista. Até em seus últimos dias de grande jogador, inventou um tirambaço inesquecível em Anfield para fazer-se bem lembrado num jogo épico.
O que ninguém sabia é que Victor era um elefante de cristal, e seu corpo edificado em pura potência se estilhaçaria por completo no primeiro saracoteio. Depois de dois anos de auge incontestável, e no momento de realmente tomar conta do meio de campo da equipe, seus músculos se esfacelaram de fibra em fibra. Pouco sobrou do jogador que era.
A decadência física de Big Vic foi um efeito dominó com muitos ‘e se’ no Tottenham. Reconstruído, o queniano serviria para dar liberdade para Lo Celso atacar mais e até desafogar a responsabilidade de Winks — que não foi e nunca será um primeiro volante. Seria também a grande vértebra defensiva da equipe, garantindo mais espaço para Aurier avançar tranquilo e evitando que os zagueiros (principalmente Sánchez) precisem desmontar tanto a linha de retaguarda ao se anteciparem em desarmes e interceptações. Em cacos, porém, o atleta de nada nos serve; fato atestado com sua saída a custo zero para o Montreal Impact.
Wanyama chegou ao Tottenham em 2016, após 97 jogos e três temporadas defendendo o Southampton — onde conheceu Mauricio Pochettino, inclusive. O queniano deixa o norte de Londres após os mesmos 97 jogos que disputou pelo time praiano, mas tendo duas temporadas a mais na bagagem: indício mais claro possível de sua infeliz incapacidade em lidar com as constantes lesões.
O número de jogos soa estranho porque nos pinica a cabeça jurar que seriam muitos mais. Os meses de volante de elite passaram rápido e acabaram até antes do suposto auge da equipe. Agora, sem nosso elefante, seguimos adiante sem a menor perspectiva de reencontrar o equilíbrio natural, numa paisagem um pouco mais feia e inabitável do que a que ele nos ajudou a ter.