Entre inesquecível e intocável, fico com insubstituível

A vida sem Mousa Dembélé

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readJul 16, 2020

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Antever a próxima passada do adversário é um atributo concedido a uns poucos sortudos que terão um algo a mais sobre seus concorrentes de posição ao longo da carreira. Fica mais fácil desarmar, passar, interceptar, driblar, conter ou fugir. Carrega-se uma vantagem natural, intrínseca ao atleta e independente da equipe, do esquema ou do contexto, onde tudo se vê e tudo se lê com clareza irretocável. É desse pretexto que nasce um craque para a eternidade.

Dembélé não é esse jogador — nunca foi, e não há mais tempo de ser — , mas é o antídoto. É a substância que faz desse craque, por alguns instantes, um mero mortal. É a força que torna até quem pode ver o futuro incapaz de conter suas ações. É o autor da previsibilidade inviolável.

Seus movimentos sempre foram inacreditavelmente simples de se rastrear. Antecipar o caminho da bola a partir de seus giros e arrancadas é um exercício involuntário, espontâneo, e quase sempre certeiro — tanto para nós, espectadores, quanto para eles, adversários. Porém, não há fórmula ou força que permita ao inimigo impedi-lo de executar seus pequenos atos por completo.

Talvez ele tanto se sobressaia em presença e domínio que os sensos alheios sugiram antecipar uma jogada mais vaidosa, triunfante e corajosa. Marcam-no achando que marcam um craque geracional. Esperam o inesperável. Mas enquanto os olhos em volta buscam esse desfecho raro, o belga sai carregando a redonda sozinho pela porta da frente, pela solução mais simplista, como Django dando as costas pro casarão incendiado e pros corpos chamuscados no fim do filme.

Naquele (quase sempre) breve intervalo de tempo, nenhum homem na Terra é mais corpulento, mais inteligente ou mais sagaz. O movimento é sublime e impenetrável. O raciocínio é soberano e inimitável. Ritmo puramente líquido, lúbrico, que unge, que encharca. E num passo violentamente denso, pesado, que carrega, que entorpece. Mousa flui como azeite, ouro líquido, com o qual nem a mais cristalina água se mistura ou se transpõe.

Escondido à plena vista, seu repertório nunca contou com dribles plásticos, chutes exagerados ou passes esnobes. Dentro e fora do riscado, seu trunfo consiste na franqueza e objetividade de um facilitador que se desdobra pelo bem comum. Talvez por isso, mesmo que no jogo não houvessem gols e placares, a gente ainda pagaria para vê-lo articular seus movimentos por entre os adversários alagados.

Muito se exige do antídoto, porém, quando há de se enfrentar alguns gigantes toda semana. Sua vantagem natural (diferente daquela do craque para a eternidade) é finita, e se desgasta mais à medida que passam os anos. E só o tempo, força cruel e incessante, é capaz de apodrecê-lo a ponto de extirpar seu efeito.

Daí surgiu, no ano passado, uma incômoda angústia ao assistir o meio-campista saindo de cena sem ter direito a uma última dança, a uma homenagem que traduza sua real dimensão, a um espaço nos holofotes que banham o inesquecível. E de alguma forma, este fim foi o que melhor representou sua figura: uma elegante falta de alarde. As coisas realmente belas não clamam por atenção.

Mas chegou a hora de se preparar para a vida sem Mousa Dembélé, e ninguém o fez conforme o esperado. Não à toa os meses mais conturbados da última meia década (num clube que é conturbado por natureza) vieram após sua saída para o futebol chinês. Aí, Pochettino acreditava que Winks receberia o bastão, depois entendeu que Ndombele seria seu sucessor perfeito, e a ficha de todos que assistiam caía um pouco mais a cada teste frustrado.

Pobres de nós que quebramos a cara semana após semana acreditando que sua capacidade poderia ser substituída assim, como as pilhas de um controle remoto. Quase dois anos depois, um José Mourinho mais cético, que para a nossa sorte não tem olhos para a graça e a magia das quais ficamos reféns (e das quais já foi vítima), optou por simplesmente abdicar de um homem que faça a função de Dembélé na equipe.

Carregamos o legado do belga como um jogador inesquecível e intocável, mas nos recusando a crer que ele seria o que temíamos: insubstituível. Acertou Mourinho em sua opção supracitada, fazendo vista grossa para nossas doces memórias, já que não há como emular o que existia por dentro daquela camisa 19.

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