Gareth Bale e a página dobrada

A imortalidade é o último objetivo do galês

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
5 min readSep 19, 2020

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Engraçado como aquele último gol deixou um gosto esquisito de quero mais. O foguete de canhota no ângulo sobre o Sunderland cravando o recorde de pontos na ‘Era Premier League’ na última finalização do último jogo da última temporada de Gareth Bale vestindo a camisa do Tottenham sempre me trouxe alguma coisa de um impulso libidinal sobre o que já passou, como aquela saborosa pontinha de página dobrada num livro querido.

Quando o galês, em seu grande ato final, imobiliza no chão a bola que caiu girando do seu peito, para em pé para respirar fundo e só depois dessa pausa dramática segue com o corte pra dentro do núcleo adversário, nada no mundo me diz que aquilo não era ele pensando “ok, é assim que eu me despeço”.

Pra melhorar, a reação das arquibancadas contempla a grandeza do acontecimento. Um grito diferente dos outros, com orgulho, angústia, zelo e gratidão misturados no mesmo tom. Dois pulos de ânsia e o olhar cansado pro céu, dividido entre a graça e o clamor.

Era impossível aquele ser o último capítulo. Era impossível ele nos fazer acreditar que tudo pode ser mais bonito e não estar aqui pra ver as paredes pintadas. Por essas e outras, aquele gol sempre teve uma ponta solta.

Não era um ‘adeus’, então. Era um ‘até outra hora’

Depois daquela tarde, Bale fez valer os 100 milhões de euros da sua etiqueta no primeiro ano em Madrid e dobrou ou triplicou este valor nos três ou quatro anos seguintes. Gosto de dizer que a dizer que o ápice da carreira de Bale começou de verdade fora de campo, nas frações de segundo em que seu corpo escapava de Marc Bartra na final da Copa del Rey em 2014. Ali, o herdeiro europeu do Ballon d’Or era capaz até de me fazer simpatizar (só um pouquinho de nada) com um clube como o Real Madrid.

No mundo do futebol a ampulheta tem menos areia. Parece que de repente o galês passou a ver aquele fabuloso horizonte no retrovisor. E se houve um auge, ele acabara de passar voando. Os quatro títulos de Champions League — dois deles decidindo a final — já eram passado pra a exigente (ou ingrata?) torcida merengue.

O cabelo longo, a barba por fazer e a feição seca não combinaram com o Bernabéu. Já com jeitinho de aviso prévio e um ar meio rorschachesco, Gareth sequer fez o mínimo de sua obrigação nos últimos… vai, dois anos. Afinal, o que há de comer alguém que já está empapuçado?

O camisa 11 sempre teve o próximo degrau como combustível. Dominou a lateral esquerda, aí a meia esquerda, a ponta esquerda, a direita, aí a Inglaterra, a Espanha, a Europa e o mundo. Não havia mais desafio além de esmerilhar perfeitamente os dezoito buracos de uma partida de golfe ou levar Gales pra uma Copa do Mundo.

O desejo é o que define nossas prioridades, e Madrid perdeu seu sex appeal

Admito que nostalgias não me comem, mas sou do tipo que prefere rever um filme velho pela quinta vez a descobrir um novo. Jogo as mesmas franquias de videogame desde o Playstation 2. Já voltei com ex três vezes, e só me arrependo de uma delas. Em resumo, gosto de encontrar prazer no que já me deu prazer. E nessas andanças, entendi que futebol é puramente identidade, e que Crouch, Sheringham, Defoe, Ardiles, Keane, Klinsmann me provam que o Tottenham é exatamente igual a mim.

No meio da negociação por Reguilón, estou certo de que Daniel Levy se coçou inteiro ao lembrar que o ídolo teve seu legado representado em cifras e jorrado por sete outros pares de pernas. Esse não é o fim justo de nenhuma grande história. Como torcedor do time que é dono — qualidade esta que eu não posso lhe tirar — , naturalmente fez valer o impulso. Mais do que isso, o fez contaminar até que clube, torcida, empresário e jogador estivessem inteiramente convencidos que ainda havia mais história a ser contada.

O desafio que hoje instiga um dos maiores jogadores da década a voltar pra casa é concretizar uma realidade que ele próprio fez possível. Fechar um ciclo que sua perna canhota nos permitiu abrir, e substituindo quem teve o papel de o substituir.

Digo, Gareth não tem mais nada a provar. Venceu o que queria vencer, decidiu o que lhe coube decidir e ganhou dinheiro para garantir seis gerações sucessoras. A única coisa que há para além do máximo que um ser humano mortal pode se realizar é justamente a imortalidade. E existe jeito melhor de conquistá-la do que sabendo como é bom o gosto de defender o clube que lhe mostrou o mundo, ou lembrando como é deliciosa a certeza de adorar e ser adorado? Em sua biografia também havia uma pontinha de página dobrada.

O contexto é a grande arma do Tottenham para recuperar um grande atleta

Mas mais importante que o reencontro em si é o timing. A reestreia de Gareth Bale pelo Tottenham, seja lá quando for, será exatamente sua 500ª partida como profissional. Muita água passou por baixo da ponte desde o primeiro adeus. E ainda há quem diga que passa do ponto ter como destaque um jogador de 31 anos, mesmo que aplaudam quando é o vizinho que o faz. “Bale hoje deve ser metade do jogador que era no auge com o Real Madrid”, dizem. Mas o que é a metade do quinto melhor jogador do mundo? O décimo melhor jogador do mundo? Perfeito, por mim.

Não há nada como uma dose cavalar de entusiasmo numa temporada de autoestima tão baixa. Um ídolo geracional — vitorioso, calejado e experiente — no elenco pode ser nossa grande ignição, não? Harry Kane tinha 17 anos de idade quando Bale fez Maicon de gato e sapato. Winks, 14. A aura ao entrarem em campo juntos será diferente.

Vamos lá, se James Rodriguez precisou de 45 minutos pra provar ao mundo que não é só mais um refugo imprestável em fim de carreira, imagino o que o galês não possa fazer voltando a Londres. Acima disso tudo ainda há o fator Mourinho, que já resgatou dezenas de craques (Eto’o, Essien, Fabregas, Drogba, Ibrahimovic…) de momentos desfavoráveis na carreira.

Ainda que isso tudo pareça um sonho de sono bom, o bom filho realmente voltou. E com vontade de fazer o que aprendeu a fazer enquanto esteve longe. Um homem que não se dedica à família jamais será um homem de verdade, escreveu Mario Puzo.

Agora só precisamos de outra bandeira. Tottenham. Gales. Golfe. Madrid. Nessa ordem. Exatamente nessa ordem.

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