Já é

Chegou o inevitável dia

Vinícius Nascimento
Galo de Kalsa
4 min readAug 12, 2023

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Antes de qualquer coisa, preciso fazer o mesmo alerta que meu amigo Nateus Pera fez em seu premonitório texto que versou em prosa sobre a dor do dia em que ele for embora: não se meta nesse tipo de ambiente se sua cabeça não anda muito boa ou em situações de coração fragilizado demais. Só vai piorar.

Não que torcer pro Tottenham seja um exercício daqueles que preservam a sanidade. Na realidade, entrar nessa brincadeira tem os mesmos efeitos colaterais de uma dieta baseada em acarajé, hambúrguer e demais frituras. É gostoso, mas no longo prazo só vai entupir suas veias e levar pro caixão mais cedo do que deveria.

Comecei esse texto determinado a contar como há um samba pra tudo na vida. Principalmente pra saudade. Principalmente pro amor. Principalmente pra dor. Principalmente pra esperança. Principalmente pra tudo que houver sentimento. Sambar é sentir e se permitir sentir. Talvez por isso a gente chore tanto escutando. Não sei.

Já são três parágrafos te enrolando e querendo convencer-te a fechar essa janela e ir embora. São três parágrafos também evitando falar sobre o que a gente já sabia: chegou o dia em que ele foi embora e muito provavelmente para encontrar a grandeza que a gente não podia oferecer.

Talvez não precisasse ser logo depois dele mostrar que é o melhor atacante do mundo em atividade ao resolver um amistoso com quatro gols e em uma época em que o Tottenham desistiu desencanar de fazer as coisas pegarem no tranco brincando de all-in para voltar àquela mesma origem que o trouxe de volta à prateleira que hoje está.

Somente no Tottenham que José Mourinho e Antonio Conte entraram e saíram sem deixar, para além das intrigas, um punhado de troféus. Vamos e convenhamos, isso era óbvio. O Tottenham é vagabundo, não ordinário. Longe disso. É um clube especial. Tão especial a ponto de formar alguém como Harry Kane. Não haveria como as coisas serem, por aqui, como é no resto do mundo.

Não acho que perdemos Kane pela falta de títulos. De coração. Se pecamos muito pela falta de capricho, o próprio Kane em suas epopeias pela seleção inglesa e dentro de cenários tidos como mais ideais também falhou. Vide a última Copa e o pênalti desperdiçado contra a França. A Eurocopa entregue em casa à Itália. Nem só de Tottenham viveu Kane. E ele também falhou com as próprias pernas, sem nossa culpa – e temos muitas.

Perdemos Kane no caminho cruel das perdas de perspectivas. Nada é tão cruel a um torcedor do clube quanto lhe retirar a empáfia. Antes de qualquer jogo, eu quero que qualquer adversário nos sinta. Que tenha aquele medo de pensar “será que vai ser contra mim que eles vão perder a sina?”. O Tottenham é uma alucinação gostosa e gera medo em muita gente. Por diversos que sejam os motivos. Mesmo que não sejam justificáveis. Essa falta de vergonha na cara sumiu quando apertou-se o botão do vale tudo. Porque não vale. Nunca valeu.

Desde a saída de Pochettino, a realidade é que quase ninguém, para além do Manchester City, nos sentiu. E essa agonia é cara. Nem nós mesmos, com exceção aos dias contra o atual campeão europeu, conseguimos nos sentir. Isso castigou a alma. Da gente e de Kane. No final das contas, não conquistamos nada, perdemos o pouco que tínhamos, e agora vemos o maior ídolo da história moderna do clube e maior artilheiro de sua centena e punhados de anos de vida ir embora.

Tenho plena convicção de que ele não sairia tão relutante sem um projeto como esse que Ange Postecoglou indica começar a construir não fosse tão recente. Olha a diferença de postura quando foi a saída pro City, esta sim, com ele forçando, pra agora quando eventualmente saiu. Ele praticamente implorou pra não ir. Colocou mil e uma condições. Tentou evitar o inevitável – como tentamos que fosse durante todos esses últimos 5 anos.

Essa empáfia de jogar bem para poder vencer, de incomodar com personalidade balançou o coração de Kane, que, dessa vez, fez somente o que estava ao alcance para não ir. Dessa vez, não dava para exigir que ele fosse além, como fez, por nós, ao longo dessa quase década consecutiva.

A saída era tão inevitável quanto as taças, que ele já pode começar conquistando lá no Bayern – mas que ele ponderou justamente por ser tão nosso. E, se consola, por querermos encontrar um eixo que nos pertence de fato mais uma vez. One of our own nunca fez tanto sentido quanto nas fotos em que ele está.

O samba tem verso pra tudo e nos últimos dias o luto tem me deixado naquele estado insuportável em que “tudo faz lembrar você”. A Kane, já pensei em fazer todo tipo de carta de amor daquelas constrangidas para pedir desculpa por não ter dado certo como era pra ser – apesar de ter, sim, dado certo. “Ou quem sabe lhe dizer que a nossa união foi linda pra gente acabar assim”.

Pra onde você for

lá pra mim já é

irei (não prometo ver mais que os melhores momentos do campeonato alemão)

Se você quiser

a saudade é dor

volta meu amor

Assim que puder.

💙

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