John White: o fantasma e o relâmpago

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
Published in
6 min readJun 19, 2019

O futebol está cheio de casos para os quais olhamos e pensamos no que aquilo poderia ter sido. Devido à grandeza do esporte, os jogadores até parecem ser organismos quase que intocáveis estabelecidos acima dos seres humanos comuns, mas eles estão tão propensos a sofrer quaisquer fatalidades ordinárias quanto nós. Lembre-se de Dener, da Portuguesa, nos anos 90. Um talento imensuravelmente brilhante que sucumbiu em uns poucos e agonizantes segundos sufocado no cinto de segurança do banco do passageiro de um Mitsubishi Eclipse.

Há muito tempo, os Spurs também tiveram seu Dener. Aos 24 anos, John White já era o cérebro do time que conquistou o primeiro “double” da história do futebol inglês. Aos 26, já havia vencido seis títulos nas últimas três temporadas pelo time londrino. E no verão seguinte foi vítima do ocorrido que lhe tirou a vida da forma mais trágica, inusitada e icônica possível.

A década de 50 não foi fácil para John Anderson White. Até os 22 anos, o garoto era recorrentemente menosprezado por seus treinadores do Alloa Athletic e do Falkirk (ambos da Escócia) por ser magrelo e franzino. Apesar de amar o futebol, sua esperança era seguir servindo ao exército e caminhar com a carreira militar. Dizem que o garoto esperava, nas forças armadas escocesas, desenvolver seu corpo o bastante para que deixasse de ser motivo de chacota. Dessa forma, a prática de esportes (tanto o futebol como o golfe, seu hobbie favorito) seria deixada para as horas vagas, como aconteceu até 1959.

Acontece que depois de uma temporada incrível na Escócia, White passou a ser observado pelos times da primeira divisão inglesa, mas nenhum deles teve a audácia de investir num atleta tão mirrado. Dave Mackay (parceiro de seleção escocesa), porém, o recomendou para Bill Nicholson, então treinador dos Spurs, e este procurou saber mais sobre o garoto de uma forma diferente da dos outros cubes; ao invés de se dirigir ao Falkirk, Nicholson preferiu se informar com os superiores do garoto no exército.

Os comandantes militares convenceram o técnico dizendo que White possuía uma velocidade de raciocínio invejável e era ótimo competidor em corridas cross-country. Rápido e inteligente, era o atleta que os Spurs precisavam para fazer história. Nicholson assumiu o risco que nenhum outro cartola ousou assumir e trouxe o jovem meia para Londres no meio de 59.

O Tottenham do início da década de 60 é um dos times mais memoráveis do histórico esportivo britânico. Dave Mackay, Jimmy Greaves, Danny Blanchflower, Cliff Jones e Bobby Smith sob o comando do lendário Bill Nicholson. No currículo, campeonato inglês, FA Cup e Charity Shield em 1961, FA Cup e Charity Shield em 1962 e Supercopa da UEFA em 1963. Sob tudo isso, estava o cérebro afiado, a velocidade incontrolável e a destreza singular de John White.

Levando o número 8 sobre as costas, não demorou para que o pequeno gênio fosse apelidado de “Fantasma”. Sua inteligência e ritmo invejáveis o faziam penetrar na retaguarda adversária de maneira sorrateira. A precisão nos passes, a sagacidade com a bola nos pés e a pele enevoada faziam os oponentes encararem um espectro indomável em movimento sobre o gramado.

Sempre caindo pela direita, White controlava a bola como poucos e era o mais puro sinônimo de criatividade. Ambidestro, sabia encontrar espaços com suas arrancadas, corria durante todos os 90 minutos (o cross-country certamente ajudou a construir pulmões de aço) e ainda era exímio finalizador.

Quando um marcador o guardava com os olhos, bastava uma piscada ingênua para perdê-lo de vista; assim ele sumia e ressurgia bem diante dos olhos — mas longe das canelas — do defensor, como um fantasma. Foi o tipo de jogador que a torcida demora a apreciar simplesmente por não ser capaz de, num primeiro momento, ver exatamente o que ele faz — exatamente o mesmo drama dos adversários. Era impossível de marcar, com os olhos ou com o corpo.

Com o escocês na equipe, o Tottenham não terminou um campeonato abaixo da quarta colocação. Neste tempo, o meia esteve indisponível para quinze partidas oficiais, dentre as quais o time só venceu uma. Não é à toa que enquanto o camisa 8 esteve em White Hart Lane, o clube viveu o período mais ilustre e vitorioso de sua história.

John White era a grande engrenagem do time, a faísca necessária para acender a impecável equipe multicampeã na Inglaterra. Tanto que, depois de seu inesperado falecimento, o clube precisou de pelo menos cinco anos para encontrar uma reposição minimamente adequada para substitui-lo.

No meio de 1964 — final da temporada 63/64, na qual o Tottenham terminou o campeonato na quarta colocação — , o capitão Blanchflower vivia suas últimas semanas antes da aposentadoria. Bill Nicholson então chamou White para dizer que, dali em diante, a equipe seria construída em volta de seus pés.

O meia prontamente renovou os ânimos para a próxima temporada. O nascimento de seu segundo filho, Rob (que veio para acompanhar Mandy, que já tinha dois anos de idade) também foi outro grande combustível.

Empolgado, White se reapresentou ao clube depois das férias na manhã do dia 21 de julho. Além de tirar a foto oficial do time, o camisa 8 passou o dia ajudando Dave Mackay a andar pelo complexo com sua perna engessada, atendendo as crianças que lhe pediam autógrafos no portão, abaixando as calças de Cliff Jones ou jogando tênis com Terry Medwin pra ajudar em sua fisioterapia.

Ao fim do dia, o novo capitão dos Spurs decidiu reviver seu velho hobbie com um singelo jogo de golfe no campo de Crews Hill. Mesmo sem nenhum parceiro para a partida e vendo o céu escurecer ao fim da tarde, o meia optou por prosseguir.

A chuva apertou rápido e logo se viu uma grande tempestade pairar sobre o céu de Londres. Ensopado, White guardou seu taco e se sentou no pé de uma árvore para se proteger do dilúvio que o pegara de surpresa, totalmente isolado no campo de golfe.

Rápido, incisivo e fatal. O relâmpago que caiu sobre o campo de golfe foi inacreditavelmente parecido com sua vítima no campo de futebol.

White, à esquerda de Ron Henry

Ninguém vê um raio chegando — bastava uma piscada ingênua para perdê-lo de vista; assim ele some e ressurge bem diante dos olhos. Uma descarga tácita e sorrateira — o som do trovão só vem depois do silêncio que antecede o choque, bem como o som da torcida só vem depois do silêncio que antecede o gol -, como um fantasma, tirou a vida daquele que poderia ter marcado época de outra forma além da morte mais spursy de todos os tempos.

Para os mais velhos torcedores ingleses, o falecimento de John White é algo como o 11 de setembro; todos se lembram o que estavam fazendo no exato momento em que ouviram a chocante notícia. O evento foi uma enorme reviravolta não só na história do Tottenham, mas também da seleção escocesa e de todo o futebol britânico. Jimmy Greaves diz que, se não tivesse escolhido jogar golfe naquela tarde, o meia certamente poderia ter sido um dos maiores jogadores de todos os tempos.

Ao falar do “jogador que morreu atingido por um raio jogando golfe sozinho debaixo de chuva”, tentemos ressaltar a habilidade, a genialidade e a perspicácia do atleta, além de lembrar do homem generoso, dedicado, brincalhão por trás do craque. Sem saber o que poderia ter sido, nos resta manter viva a lenda de um dos grandes ícones da história do clube.

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