Levy, Lewis e a rota do dinheiro no Tottenham

Não há nenhum ponto sem nó na sala do financeiro

Mateus Pera
Galo de Kalsa
8 min readJun 28, 2020

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Na semana anterior à volta da Premier League, estávamos preparando um texto abordando as polêmicas finanças do Tottenham. Era um texto bem grande, cheio de números e dados, que trazia as notícias e suas explicações em contexto. Era tão grande que enquanto eu escrevia meu computador surtou e apagou todos os arquivos salvos nele. Juro.

Agora, já mais calmo, vim aqui focar na parte que considero menos burocrática do texto perdido, na qual eu condensava tudo e tentava acalmar vocês a cada trovoada dessa tempestade, sabe? Abraçar, dar um beijo na testa de cada um e dizer “papai Levy foi lá fora pra cuidar da gente, tá? Ele foi trabalhar e vai voltar com a comida”, porque é isso, podemos dizer que Levy é Pedro, e sobre essa pedra edificamos nosso estádio.

Digo isso porque o começo de tudo é no estádio. E eu não vou saber dizer precisamente, mas na época em que Pedro Reinert — que pra aproveitar a blasfêmia já praticada, vou aproveitar e chamá-lo de primeiro Papa do Tottenham no Brasil, homem que trazia a palavra sagrada no extinto One Hotspur e nos reuniu no amor de Harry Kane — escrevia sobre a construção do estádio do Tottenham e comentava como isso faria a gente subir de patamar, já havia um homem pensando nisso e trabalhando por isso há tempos. E esse é Daniel Levy. O nosso malvado favorito.

O estádio foi inaugurado em 2019, mas as movimentações para isso começaram *bem* antes. Podemos dizer que o primeiro passo para isso foi quando o clube instituiu uma política salarial que permitisse pensar no longo prazo — e eu realmente não faço ideia de quando isso foi instituído, provavelmente ainda na década passada, mas estou certo de que quando colocaram este modelo pra rodar, não pensariam que este seria um dos pilares responsáveis pelo clube ter sido considerado o clube mais valioso da Premier League no ano de 2019.

Provavelmente na mesma época em que estabelecemos esse pacto de salários, também entendemos que nas janelas de transferências só poderíamos gastar o que arrecadássemos nas vendas. Pra quem acha que o Tottenham deu mole em não tentar trazer Timo Werner ou que precisamos fazer absolutamente qualquer negócio pra trazer Coutinho, essa é uma informação sempre boa de ser lembrada.

O problema é que em meio a esse planejamento, que fez o time ser um tanto quanto econômico demais, o mundo mudou. Vejamos: a Premier League recebeu uma injeção de dinheiro que inflacionou todo o mercado do futebol inglês, Levy segurou as rédeas, não se deslumbrou com o dinheiro e manteve o teto nos salários e nos gastos o máximo que pôde (pois havia um estádio a ser erguido, afinal).

Os contornos dessa construção vocês conhecem: um estabelecimento — cujo dono não queria abrir mão por ser torcedor do Arsenal — sofrendo ~combustão espontânea~, grande valorização nos terrenos da região, necessidade de diversas contrapartidas ótimas para o fortalecimento dos laços entre o clube e o povo que divide a região norte da cidade e um Brexit causando incerteza em investidores. Tudo isso contribuiu para que um estádio originalmente orçado em £400 M acabasse custando £1,2 Bi, mesmo sem a gloriosa sala de queijos, e com um atraso na estreia por conta de testes de segurança. Mas ok, imprevistos acontecem. Obra é tudo igual.

A infame busca pelos naming rights continuam em aberto nesse mar de incertezas, mas temos shows de Lady Gaga a Guns N’ Roses na agenda, além de disputa de cinturão de boxe e NFL no estádio. Somando isso ao 30 mil proprietários de season tickets na lista de receitas do clube, comercialmente não há dúvidas de que o projeto do Tottenham Hotspur Stadium foi, é e será um sucesso.

Lembremos que em setembro de 2019 o clube refinanciou £637 M da construção do estádio. Segundo uma fonte da Reuters, a intenção era de refinanciar £400M, mas Levy chegou num acordo que superou as expectativas iniciais, livrando assim um pagamento que deveria ser realizado em 2022, e postergando esse valor para um prazo entre 15 e 30 anos. Ou seja, não há possibilidade do estádio “quebrar” o Tottenham — ao menos antes desses 15 anos de carência que temos para começar a pagar os títulos.

Mas então, por que mesmo assim o Tottenham se envolveu em tanta polêmica pedindo dinheiro pro governo inglês durante a pandemia?

Primeiramente, o clube tentou aderir a um programa em que o governo pagaria até 80% dos salários, limitando-se ao valor de £2.500 por mês. Isso significaria que todos os seus funcionários (aproximadamente 550) seriam mantidos, mas teriam seu salário reduzido em 20% e pago pelo governo, dando um alívio no fluxo de caixa (onde as receitas naturalmente desabaram), mas essa estratégia não funcionou.

Torcedores, jornalistas, e até políticos no parlamento: todo mundo bateu no Tottenham — e nos outros times que cogitaram, como o Liverpool. Afinal, quão sacana seria não negociar uma redução nos salários do departamento de futebol enquanto os outros funcionários receberiam do governo? Pois Levy entendeu, baixou a cabeça, e acabou que só ele e seu board tiveram cortes salariais significativos.

Pouco tempo depois, porém, o clube anunciou que a adesão à um outro programa do governo, o COVID Corporate Financial Facility (CCFF). Foram £175M recebidos em empréstimo a uma minúscula taxa de juros, que começará a ser cobrada a partir do próximo mês de abril. No comunicado oficial, o clube deixa claro que esse dinheiro não será usado para contratar jogadores, e sim para mitigar os efeitos devastadores que a pandemia está tendo sobre a instituição como um todo.

Por ter sido o único clube a aderir ao programa, é claro que a notícia virou pauta de parte da imprensa e da timeline dos times rivais, jurando que o Tottenham viria a falir, que o Kane vai precisar ir pro United, que o estádio quebrou a banca e esse tipo de papo furado. Mas acontece que o Tottenham é provavelmente o único time da Premier League que cumpria os requisitos do CCFF para usufruir do empréstimo.

Algumas fontes sugerem que o Manchester United também poderia aderir, mas optou por buscar outras soluções em iniciativas privadas. Então, se tem alguém preocupado, eu diria que só devemos começar a cogitar a falência do Tottenham depois que outros 18 times da Premier League declarem a bancarrota, e o United fique sozinho na liga após pedir pros Glazer injetarem mais dinheiro. Esse é o meu primeiro ponto quanto a isso tudo.

O segundo ponto é que, no que diz respeito ao empréstimo, o Tottenham pode sim pegar todo o dinheiro do CCFF e, sei lá, comprar o Mbappé. Não há nada que proíba. Mas o objetivo de Daniel Levy com essa grana é simplesmente pagar todos os salários durante esse período em que as receitas encurtaram, e sem as polêmicas que a linha de financiamento da folha de pagamento gerou.

Esse dinheiro também pode ser usado para quitar parte dos valores referentes à construção do estádio, caso fosse um problema. E talvez até usem para isso, se após aquele refinanciamento ainda restar alguma dúvida de curto prazo pro clube.

E o último ponto que eu penso que deveria ser abordado é: Joe Lewis (“dono” do Tottenham) é bilionário. Por que ele próprio não injetou esse dinheiro? E, bem, é verdade que Joe Lewis é bilionário, mas a real é que ele não está nem aí. Desde que chegou no clube, em 2001, não tirou um centavo do próprio bolso. O Tottenham gasta o que o Tottenham vende. Lewis gosta é de dinheiro, e não há nada de errado nisso.

Pra quem não sabe, Joe é um bilionário discreto que mora nas Bahamas, dono de uma holding de empresas chamada Tavistock, que tem aproximadamente 200 empresas no portfólio. Várias delas operam em mercados que são mais rentáveis, se recuperarão mais rápido e, no momento, tem mais oportunidades de boas compras que o mercado de futebol. Por que diabos ele enfiaria £200M no Tottenham e não na compra de um complexo de prédios de apartamentos em Manhattan?

Pra nós que gostamos do esporte, nos apaixonamos pelo clube e queremos ver nossos valores representados e blá blá blá, sim, faria todo sentido e seria ideal que conseguíssemos nos manter com “nosso dinheiro”. Mas pra um cara que viu a merda antes dela acontecer e principalmente viu como lucrar em cima disso — nota: nosso amigo Joe Lewis fez muita grana especulando e “quebrando” o Banco da Inglaterra na Quarta-Feira Negra — , é idiotice. Simples assim.

Então, meus amigos, se Joe Lewis injetasse £175 M no Tottenham, quanto vocês acham que ele iria querer de retorno? Sabendo que todo dinheiro tem um custo, o “custo do capital próprio” nessa situação seria menor que o “custo do capital de terceiros”? É bem provável que não. Levy sabe disso, porque ele sabe muito mais de finanças que eu e você. E pior, ele conhece Joe Lewis muito melhor do que eu e você.

Temos que aceitar que o Tottenham é um filho com um pai ausente, que aprendeu a andar com suas próprias pernas graças a Daniel Levy, e que muitas vezes nós não temos toda a informação necessária pra julgar o seu difícil trabalho. Ele foi o capitão desse navio desde a chegada da ENIC em 2001. Ele nos colocou no rumo do que podemos colocar como “crescimento orgânico”, e muito mais por necessidade do que por opção. Ele fez do Tottenham um clube de escala mundial, o que é impensável pra um clube cujo último título foi uma copa doméstica há mais de 10 anos.

Nesse momento, o futuro é obscuro para o mundo todo. Muita gente especula que haverá uma deflação generalizada no mundo puxada pela queda da atividade econômica, o que é um cenário novo e desafiador. Considere ainda que Angela Merkel, há 2 dias, disse algo como “o Reino Unido que aguente as consequências de suas decisões”, em relação ao Brexit e os acordos comerciais entre UE-UK. Ou seja, é provável que as coisas na Inglaterra fiquem tão confusas nos próximos anos que haja uma fuga de investidores — inclusive no futebol.

Por hora, então, entreguemos nas mãos de Levy e confiemos que o momento é exatamente como ele: cauteloso e pessimista. A cara do Tottenham.

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