North London Derby: as raízes do clássico entre Tottenham e Arsenal

Os motivos pelos quais Gunners e Yids alimentam uma rivalidade tão feroz

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readJun 19, 2019

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Os dois maiores times de Londres nasceram quase na mesma época. O Hotspur Football Club foi fundado em 1882, enquanto o Dial Square, time organizado por um grupo de trabalhadores da fábrica de armamentos Woolwich Arsenal, foi concebido em 1886.

A primeira partida oficial entre os dois clubes, um ano depois da fundação do Dial Square, foi suspensa a 15 minutos do apito final. Quer dizer que a rivalidade teve início numa briga generalizada que forçou o árbitro a guardar a bola logo no primeiro embate? Não. A luz no estádio simplesmente acabou. Era noite. Era 1887. Não dava pra ver merda alguma. Tiveram que parar. Mas vale lembrar que o Tottenham Hotspur (que já havia incorporado o nome do bairro ao nome do clube) vencia por 2–1 quando o jogo parou.

O primeiro duelo válido pela liga inglesa foi em 1909. O Woolwich Arsenal (que já tinha sido Dial Square e Royal Arsenal) venceu por 1–0, mas até aí não havia nada de especial entre as duas equipes.

Até o início da década de 1910, o Woolwich Arsenal era sediado exatamente em Woolwich, na região de Kent, extremo sul de Londres. Na virada da década, o clube faliu graças a sua péssima localização geográfica que distanciava o público do estádio. Um empresário chamado Henry Norris comprou a equipe e, três anos depois, decidiu mudar o clube de bairro.

A região de Londres onde os lotes eram menos valorizados era o norte, repleto de imigrantes, negros e trabalhadores industriais, então era mais barato construir um estádio ali. Norris tirou o “Woolwich” do nome da equipe e fincou sua bandeira em Highbury, a menos de 7km do White Hart Lane. Aliás, é por isso que eu gosto de chamá-los de falsos nortistas aqui no blog.

Como a região era dominada pelo Tottenham, foi configurada uma invasão, que obviamente não foi bem aceita pela torcida lilywhite que comandava o território — tanto que estes, até hoje, gritam “get the f — — back to Woolwich!” nas arquibancadas. Os jogadores dos Spurs também não gostaram da mudança, tanto que passaram dois anos sem perder para o novo inimigo.

Aquilo que era mais um desconforto do que uma aversão tomou proporções muito maiores em 1919. A liga inglesa, que foi interrompida por cinco anos durante a Primeira Guerra Mundial, passou por uma reformulação na qual a primeira divisão aumentaria seu número de participantes de 20 para 22 equipes. O regulamento previa que os dois últimos colocados da primeira divisão seriam poupados do rebaixamento e os dois primeiros na tabela da segunda divisão ganhariam o acesso. Simples assim.

O Preston e o Derby County, respectivamente campeão e vice-campeão da segunda divisão em 1919, subiram de divisão automaticamente. Chelsea e Tottenham foram, respectivamente, lanterna e vice-lanterna do campeonato inglês daquele ano, mas não seriam rebaixados.

Contudo, Sir Norris achou que o Arsenal, que terminara aquela temporada no sexto lugar da segundona, merecia um lugar na elite, à frente dos dois piores pontuadores da liga inglesa e dos três outros clubes melhores colocados na tabela do segundo escalão.

O Chelsea, porém, havia sido vítima de um escândalo de manipulação de resultados envolvendo Manchester United e Liverpool naquela temporada, então recorreu à justiça para garantir sua vaga na primeira divisão; e conseguiu.

Restava uma vaga, que, por via de regra, era do Tottenham. Mas Henry Norris recorreu à justiça por meio de suas fortes conexões políticas, e seu apelo foi aceito. De repente, os Spurs estavam disputando a vaga com Barnsley, Wolverhampton, Nottingham Forrest, Birmimgham, Hull City e, é claro, o Arsenal.

No plebiscito, os líderes dos outros clubes da elite votariam para decidir quem jogaria a primeira divisão. Como Norris era amigo de John McKenna, presidente do Liverpool e figura influente na Football Association, pediu para que McKenna pressionasse os outros cabeças da federação para votar no Arsenal, que acabou ganhando o acesso nos bastidores, enquanto o Tottenham foi obrigado a jogar a segundona.

Anos depois, Norris foi banido de qualquer atividade relacionada ao futebol graças a incontáveis condenações por atividades financeiras ilegais. A injusta decisão gerou muita raiva não só a partir da torcida do Tottenham, mas também de dentro do clube, e foi aí que se instaurou o ódio diante dos invasores do norte de Londres.

A partir dali, as duas diretorias passaram a não fazer nenhum tipo de contato, e os embates entre as duas equipes ganharam um tempero muito mais agressivo.

Na Segunda Guerra, porém, os dois clubes reataram a relação diante de uma situação adversa do Arsenal. Os gunners tiveram de ceder o Highbury para a Força Aérea Real — o estádio serviu como depósito de peças e munições, além de alojamento para muitos soldados. Num ato de generosidade, os Spurs cederam o White Hart Lane e dividiram o mesmo gramado com seus rivais até o fim da guerra.

A rivalidade no pós-guerra se construiu com clássicos violentos, grandes títulos conquistados para ambos os lados (mais para o lado vermelho do norte da cidade, é claro), provocações de todos os níveis e uns e outros jogadores que ousaram virar a casaca. E foi um destes vira-casacas que esquentou ainda mais a história.

Sol Campbell vestiu a camisa dos Spurs por nove anos (doze, se contar as categorias de base). Subiu para o time principal em 1992, virou ídolo rapidamente e se tornou o primeiro negro a levantar uma taça no palanque do Wembley em 1999. Seu contrato chegaria ao fim em 2001, mas a renovação não estava bem encaminhada, tanto que o zagueiro recusou assinar um novo contrato em maio e desagradou a diretoria do clube.

Barcelona, Real Madrid e Liverpool correram para assinar com Campbell, mas o jogador se transferiu para o Arsenal nos primeiros dias da janela de transferência, deixando claro que já havia um acordo prévio.

A negociação enfureceu a torcida lilywhite, que passou a se referir ao zagueiro apenas como “Judas” — e, de quebra, protagonizar uma das cenas mais marcantes da história da rivalidade.

Depois da transferência de Campbell, o Arsenal viveu alguns de seus momentos mais gloriosos, dentre eles a conquista da Premier League com o time invencível de Henry, Bergkamp e Pires, que literalmente não perdeu sequer um jogo na competição.

A cinco rodadas do fim do campeonato, a máquina comandada por Arsene Wenger calhou de visitar o White Hart Lane precisando de apenas um ponto para garantir a taça. O empate por 2–2 fez com que o imbatível Arsenal levantasse o troféu na casa dos rivais (pela segunda vez na história, inclusive).

O Tottenham nunca levantou um troféu em Kent, no Highbury ou no Emirates, mas é o único nortista que pode se vangloriar de grandes conquistas continentais. O Arsenal, porém, é indiscutivelmente o maior e mais vitorioso dos co-irmãos em termos domésticos, com quase o dobro de troféus dos Spurs.

O maior vencedor do clássico é o Arsenal, com 78 vitórias, enquanto o Tottenham contabiliza 55 triunfos. A igualdade no placar prevaleceu em 49 oportunidades. Os falsos nortistas anotaram 286 gols na história do dérbi, contra 243 marcados pelos Spurs. O artilheiro do embate é Emmanuel Adebayor, com 10 tentos na conta (8 gols em 9 jogos pelo Arsenal e 2 gols em 4 jogos pelo Tottenham). E por mais que o lado vermelho odeie admitir, o clássico sempre é motivo para parar a maior cidade da Europa.

[publicado originalmente em março de 2016]

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