Num Tottenham de boas notícias, Udogie é manchete

Fenômeno italiano é destaque sem precedentes no clube

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
7 min readOct 28, 2023

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Reformulação, reestruturação, renovação, remodelação, reconstrução. Os sinônimos aqui são capricho de dicionário, nada importam, mas dentro de qualquer um deles estará expressa a maior necessidade que o Tottenham teve de atender nos últimos cinco anos: uma verdadeira faxina, da honesta, de virar a casa ao contrário, de tomar banho logo depois e mais um no fim do dia só pra parar de achar que ainda tem pó debaixo das unhas.

Deu certo. Tá dando. Mas vou te falar aqui que, honestamente, pareceu até sem querer. Ninguém viu acontecer direito. Isso, é claro, muito por conta da dificuldade FADIGOSA do clube, diferente de quase qualquer outro no planeta, em se desfazer de jogador que não presta. Tem PARTO menos trabalhoso do que a transação pra levar o Ndombele pra Turquia. Sánchez precisou ser vendido a preço de fruta amassada em fim de feira. Matt Doherty, tadinho, cê lembra?, foi meio que MANDADO EMBORA horas DEPOIS da janela fechar. Spence e Rodon já são Peugeots aos olhos do mercado. Winks talvez tenha sido a única exceção. E mesmo assim, Ben Davies completou há pouco uma década de clube. Eric Dier o fará ano que vem. E o Sessegnon, eu sei, você sequer lembrava que existia, muito menos que ainda tá lá. É foda.

Por essas e outras gera-se uma estranheza ao encarar o fato de que, dos onze que costumam sair jogando nessa temporada, só Son conviveu com José Mourinho, naquele passado delirante e ainda meio recente que a Amazon não nos deixa esquecer. Com exceção do sul-coreano, toda a espinha dorsal do “novo Tottenham” tem, no máximo, dois anos de casa. O tempo passa rápido quando a gente se diverte.

Mas, de todos os personagens deste movimento, entre protagonistas, coadjuvantes, figurantes e criminosos, um deles se sobressai por um simples e sereno motivo. Micky Van de Ven, por exemplo, por mais que tenha o potencial de marcar um “antes e depois” no futebol inglês, carrega um cheiro de Jan Vertonghen. James Maddison é essencialmente Rafael Van der Vaart com vidros elétricos. Se Mousa Dembélé tivesse a cintura de uma passista carioca, seria algo parecido com Yves Bissouma. E por aí vai.

Destiny Udogie, por sua vez, não tem referencial técnico, teórico ou afetivo na memória coletiva do clube. Nada visto antes no alto da N17 é diretamente comparável ao futebol galante do jovem italiano, que equilibra eficiência, destreza e bom gosto. Um lateral que não é lateral, é horizontal e vertical, perpendicular e diagonal, invertido e espetado, e que assim poderia ser considerado muito mais lateral do que qualquer outro — se fosse possível compará-lo pau a pau.

Devo alertar que qualquer trocadilho com seu nome não é trocadilho. Seus pais, Kate e Franklin, imigrantes nigerianos que se estabilizaram na classe média de Verona — cidade palco de Romeu e Julieta — falavam inglês dentro de casa e, convenhamos, já tinham nomes de origem mais próxima a William Shakespeare do que do Golfo da Guiné. Depois do primeiro filho, Uwe, que ganhou um nome naija até o osso, vieram Destiny e Desire, donos de substantivos propositalmente carregados de significado.

E veja bem: em 2008, defendendo o fraldinha do Nogara, time da região em que nasceu, Destiny chamou a atenção de um olheiro da Atalanta que, embasbacado, foi atrás do pai da criança questionar sua idade verdadeira — não era possível que aquele moleque tinha só seis anos de idade. A mãe, Kate, fazia questão que o pai sempre levasse a certidão de nascimento dos filhos (no plural, pois Uwe também jogava bola) às partidas, e Franklin prontamente mostrou ao olheiro que seu filho do meio, Iyenoma Destiny Udogie, nascera em novembro de 2002. Diego Maradona foi descoberto com uma história parecida, mas isso não tem nada a ver.

Enfim, foi só em 2019 que ele soube que seu primeiro nome, Iyenoma, significa “boa notícia”. Somando essa rica tradução ao destino, cria-se a receita para um ser humano que nasceu para ser magnífico. Udogie (e não se engane, lê-se “udógui”) cresceu feliz na cidade do amor, e foi lá mesmo — e não em Bérgamo (olheiro burro!) — que o garoto virou jogador, mesmo sem deixar de ser garoto.

O Hellas Verona o promoveu do sub 17 direto pro sub 19 e do sub 19 direto pro time principal. Crescimento e desenvolvimento meteórico, mas fidedigno para um talento que instigava olhares desde seu primeiro toque numa bola. Rendeu €4m aos cofres do clube quando se mudou para o nordeste do país, contratado pela Udinese (primeiro por empréstimo, depois em definitivo) após um só ano no profissional.

Tudo aconteceu muito rápido e muito cedo, mas não teria como ser diferente se tratando de um fenômeno como ele. Do início da contratação definitiva com a Udinese até o acordo com o Tottenham, passaram-se só quarenta e seis dias. Depois, uma temporada brilhante que deve ter voado para o jovem que se divertiu na ala bianconeri, mas passou devagar que só a porra pra quem teve que aguentar Davies, Sessegnon, Perisic e Reguilon fazendo rodízio de paçocada.

Teve quem desacreditou da habilidade e do potencial de Udogie à primeira vista (e mais porque a internet nos tornou insuportáveis do que pelo medo genuíno de mais um lateral dar errado). “Não joga em linha de quatro”, “é fraquinho ainda, falta músculo”, “sobe o tempo todo, vai viver deixando dando as costas”, “a taxa de duelos ganhos é 0.17% menor que a desse lateral romeno do Midtjylland” e o clássico “no campeonato italiano até eu”.

Aos vinte anos de idade (!!!!!!!!!!!), nem calha imaginar a forma que o garoto deixou Ange boquiaberto nas primeiras sessões de treino, porque deve ser a mesma forma que eu fico semana após semana. Estarrecido. Assombrado. Seu futebol é a prática de um velho conhecedor de uma nova magia. O “ala invertido”, o “lateral apoiador” e tudo no que qualquer analista de desempenho busca encaixotar o jogo de Destiny parece balela.

Digo, os “alas invertidos” são famosos por não amassarem a linha de fundo, coisa que ele faz constantemente. E os “laterais apoiadores” são famosos por serem fracos na marcação, coisa que ele definitivamente não é. Tendo o craque Marcelo (Flu!) como ídolo e referência, era de se imaginar que sua capacidade ofensiva se sobressaísse quando comparada à defensiva. Maaaaas ao mesmo tempo que constrói por dentro, que vai e vem na linha lateral, que distribui passes e cruzamentos precisos e aparece agressivamente na grande área oposta, Udogie também carrega o poder de tornar qualquer ponta adversário num animal inócuo.

Quem precisa de adaptação é vira lata em casa nova. Titular em todas as partidas, mais de oitenta minutos jogados em sete das oito rodadas, duas assistências (importantíssimas) na conta e absolutamente nenhum lance a ser mau lembrado. Um início de temporada excepcional. Em seus primeiros meses de Premier League, o prodígio italiano não passou mal pra NINGUÉM. Antony foi substituído, Saka precisou jogar por dentro e Salah passou em branco pela primeira (e, até então, única) vez na temporada.

Udogie faz o certo porque inventou o certo. Suas tomadas de decisão têm sido os maiores trunfos do Tottenham de Ange Postecoglou, seja nos momentos de aperto, seja nos momentos de conservação. O bote esperto que gerou o gol da virada mais tardia da história da Premier League contra o Sheffield Utd é da mesma natureza do bote manso que fez Maddison ampliar o placar contra o Burnley. A assistência chorada para garantir a vitória em Bournemouth tem o mesmo ímpeto dos seguidos desarmes em Odegaard, coitado, que inventou de cair pela direita no Emirates e fez seu pior jogo no ano.

A lateral esquerda, historicamente um dos setores mais problemáticos e PSICÓTICOS do clube (com exceção de quando Danny Rose raspava a cabeça), deixa de repente de ser um tópico de discussão. Preocupe-se com o resto, não com ele. Destiny é um atleta de alta costura. Sofisticado sem ser rebuscado. Não hesita, não balança. Funciona como um centro gravitacional, levitando imponentemente por onde o jogo há de se desenrolar, fazendo o papel de dois ou três homens usando nem 50% do seu esforço.

O camisa 38 é um predestinado. Sua estreia como titular na seleção italiana — justamente contra a Inglaterra — deixou claro que Udogie estará nas cabeças de uma nova geração de atletas na Europa. E se ele mesmo diz já se sentir em casa, nos resta torcer para que Londres trate-o bem o bastante para que seu potencial absurdo seja experimentado em lilywhite. Sorte a nossa.

Por fim, há de ser dito: nesse mercado de valores insalubres, no qual o preço final de um jogador representa não mais o quanto sua habilidade vale, mas sim a medida da vontade de um time em contratá-lo, nenhuma leitura justifica os meros dezoito milhões de euros investidos no jovem italiano. A vontade é mandar um bolo para Paratici na cadeia.

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