O abismo

Harry Kane não é pra sempre?

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
3 min readSep 8, 2020

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Não, eu também não consegui esperar as legendas em português chegarem. Fui mais um dos milhares que pularam a cerca de plástico da Amazon pra assistir nossa série documental como se estivéssemos em terras britânicas. E é claro que não consigo apreciar com moderação alguma: devoro os episódios junto a comida na digníssima hora do almoço de segunda-feira, que acaba esticada um pouquinho além do previsto em contrato.

Pois hoje eu não comi direito.

“A parte assustadora é que tudo passa tão rápido. As temporadas passam muito rápido, o tempo passa muito rápido. Eu vou fazer 27 anos no próximo verão, mas sinto que comecei a jogar ano passado. E esse é o negócio quando você vive nessa correria sem parar, você não tem tempo pra processar as coisas. Você termina uma temporada já olhando pra próxima e de repente você está fazendo 32, 33 anos e pensando ‘eu não tenho muito mais tempo’.”

Harry Kane é o autor do parágrafo acima. Falou isso e mais um pouco em janeiro de 2020 (quarto episódio!), logo depois de sofrer a lesão que lhe tirou de campo por uns quatro ou cinco meses, e eu não sei se algum de nós meros mortais tinha ouvido essa declaração até o documentário ir ao ar. Também não sei se existe uma hora boa pra tomar noção disso, mas o almoço certamente não foi das melhores.

Acontece que Harry Kane fez 27 anos e o fim de sua carreira no Tottenham (e não em outro clube, se tudo o que há de divino no universo realmente estiver aí pra valer) está mais próximo a cada dia. Pensei em desencanar porque era sofrimento por antecipação. Pensei que já estive em situação parecida outras vezes, com Bale, Modric ou algum jogador aqui do Brasil. Mas já era tarde demais. Olhei pro abismo e o abismo olhou de volta.

O que é que eu vou fazer quando esse homem parar de jogar? O que é que eu vou dizer se esse homem decidir trocar de time? Ele dá conta de aguentar mais tempo sem ganhar títulos? Ele ama a gente tanto assim? Fui engolindo minha alma aos poucos.

E foi bem boa a referência do abismo. Nem sei dizer de onde puxei. Aí até abri um vídeo que falava sobre esse pensamento de Nietzsche, mas quanto mais eu me lembrava que não entendo um miúdo de cacete de filosofia a ponto de sequer poder fingir que entendo, mais eu me perdia no desespero de lutar contra o fato de que Kane não é pra sempre, e acho que era isso que Nietzsche queria dizer.

Kane não é Bale ou Modric. Da mesma forma que não consigo rotulá-lo como só um atacante, também não consigo pintá-lo como “só” um grande jogador que marcou época, “só” um líder de grupo que é a maior prata da casa do século ou “só” um ídolo. Aí, de verdade, tentei entender o que pode vir a ser uma vida sem ele, mas perdi todo e qualquer referencial simbólico. Sem palavras, sem imagens e sem conceitos pra imaginar qualquer cenário, encarei um grande e absoluto nada. Faça esse exercício e você vai entender o que eu tô dizendo.

Senti que estava numa camisa de força vendo Harry arrumar os quadros tortos da parede antes de sair de casa e não voltar mais, sem que eu pudesse puxá-lo pra ficar. Tudo isso com uns pedaços de pizza de ontem no colo. Eu já posso processar a Amazon por danos psicológicos ou morais?

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