O alívio compartilhado

O gol mais humano da carreira de Harry Kane

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readJun 24, 2020

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— Foi um mergulho como o do Klinsmann?

— Não foi, eu só estava cansado.

Harry Kane é o lobo de Harry Kane. Em algum momento da história, seu corpo perdeu o compasso frenético no qual seu espírito opera. É como se a determinação pesasse na balança, e o joelho e a coxa e o tornozelo não deram conta de carregar seu ímpeto sobre-humano.

Lesões nunca o impediram de encabeçar as listas de artilharia. Quer dizer, um time de meio de tabela atrás dele não impediu. Nem um Leicester com game-shark e os trios de ataque de £200M impediram. Por que as lesões o fariam?

Nunca veio à mente nem um cheirinho de dúvida sobre sua posição de soberania no futebol inglês. Só que o rombo na espinha da equipe que havia chegado a Madrid poucos meses antes deixou uma bafo de desconfiança tomar conta de cada canto do ambiente. Ninguém foi pego desprevenido, mas ninguém deixou de ser contaminado.

Em crise, Kane tinha 18 gols na conta até o réveillon. No segundo dia de 2020, ao marcar o que seria seu 19º tento (estava impedido), rompeu o tendão da coxa esquerda e saiu do St. Mary’s Stadium de muletas. Um exercício de semiótica para antecipar a bosta de ano que viria adiante.

Foram 169 dias corridos sem Harry e sem ninguém à sua altura para tomar as rédeas da equipe. E foram 173 dias corridos sem um gol nascido de seus pés, e sem ninguém à sua altura para nos fazer cair de verdade na ladainha de que “ele não é mais o mesmo de antes”.

O tapa que selou a vitória sobre o West Ham no jogo de número 200 de Kane pelo Tottenham

O desempenho em campo do atacante foi duramente contestado durante os seis meses que ele passou… fora de campo. E naturalmente a descrença sobre sua qualidade viria à galope em seu retorno pós-lesão, mesmo que ainda estivesse completamente fora de forma, fora de ritmo e meio fora de órbita.

“Como recuperar um atacante que já passou de seu auge?”, perguntou um jornalista a José Mourinho depois do empate em 1–1 com o Manchester United. Mas o que há de ser recuperado, afinal, se tudo ainda está ali em plena natureza? O movimento, o passe, a inteligência, a destreza, a liderança, a paciência, a frieza. Está tudo lapidado, testado e aprovado. Só tinha acabado de sair da geladeira.

Tem quem queira acreditar que já deu a hora de Harry Kane, que ele nunca vai repetir os 56 gols num só ano, ou que quanto mais recuado ele joga, menos decisivo ele é. Fico com pena por esses que não sentiram o que eu, você e ele sentiram ontem ao 37 do segundo tempo.

Eu sei o que você sentiu quando viu Sonny recebendo a bola perto do círculo central com Harry disparando sozinho com meio pasto à sua frente. Eu senti também. Os meses de banho-maria, as contestações desmedidas, a coxa com os músculos retalhados, o descompasso dos retornos apressados e os chutes que saíram pelo lado de fora da trave. A pressão do West Ham atrás do empate, a bola na trave de Lloris momentos antes, o destino de Michail Antonio ainda por se cumprir e a perspectiva de mais um empate na sequência mais delicada de todas da temporada mais delicada de todas.

Que loucura que foram aqueles dois ou três segundos entre o primeiro passo largo da arrancada e a finalização colocada na altura do ombro, meio de raspão, que deixa todo bom goleiro com cara de cu. Kane correu mais do que o marcador como sempre, caiu os ombros pro lado como sempre, levantou a ponta do pé direito como sempre e adivinha: decidiu.

Porra, que dúvida que era aquela? Que nervosismo era aquele? O que aconteceu, caralho? O que você tinha pensado? Que ele ia errar? Porra! A gente tá falando do mesmo cara?

O corpo de Harry Kane parece nunca se acostumar com o colosso que carrega

A infalibilidade do seu chute não é da compreensão humana, mas o despencar de carne e osso depois que a bola se escondeu no fundo da meta todo mundo entendeu: era puro alívio.

Ao dizer que só estava cansado respondendo um repórter que lhe perguntou se a comemoração foi um mergulho como o de Klinsmann, Kane deixa explícito que opera de uma forma além da terrena. Faz o que faz porque está, em espírito, acima da gente e do resto. Porque é ídolo e imortal aos 26 anos de idade (que completou num dia desses). E tudo isso é difícil de carregar sozinho.

Ao fim do jogo, porém, o camisa 10 sorriu o nosso sorriso. Não há alívio melhor do que o alívio compartilhado.

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