O desequilíbrio do sonho absoluto

Peter Crouch sempre esteve tão mais perto do céu que nem seus erros o levaram ao inferno

Fernando Valverde
Galo de Kalsa
7 min readJul 15, 2019

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A internet não colabora. O streaming pirata tá mais travado do que time do Tony Pulis. É agonizante mas é o que se tem.

Cada lance é um engasgo, em mim e na tela do computador. A continuidade do jogo se quebra e naquele curto espaço de tempo (às vezes nem tão curto assim) em que a ação se suspende, a imaginação cria mil e uma narrativas e eu sofro de véspera. A tela se mexe de novo. Alívio e agonia. Não tomamos um gol. Não fizemos um gol.

O tempo corre. Devo estar com uns dez minutos de atraso, mas pelo menos não haverão fogos na vizinhança ou gritos que me tirem da boca o ar da surpresa e o grito da consagração. Afinal, se hoje isso é cada vez mais protocolar, ali não o era.

Não sou religioso, mas certos eventos me fazem acreditar em predestinação. Aquilo que já foi determinado ou decidido, seja por um Deus ou por qualquer outra coisa de ordem maior. Até porque, o cenário foge à normalidade e só é crível por ter deixado de ser aquela hipótese que por tantas vezes não se consagrou para enfim ter se tornado o que hoje é lembrança.

Como disse o Letti, a lembrança é um sentimento que pode ser tanto engraçado quanto desgraçado e a passagem de Younes Kaboul pelo Tottenham tende a obedecer ao que se prefere como esquecível, mas também fundou sua base no que será para sempre lembrado.

O streaming continua ruim mas entre os pixels desfocados o imponderável acontece e nem importa que o Bellamy não fosse lá um exemplo de marcador. Com uma ginga precisa que jamais foi sua, Kaboul deixou o galês no abraço e em um átimo voltou a ser o que sempre foi. O cruzamento (?) sai todo errado mas de alguma forma a graça é alcançada e os meus gritos de júbilo ecoam pela casa. Eis o mistério da fé!

Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo

Cria de White Hart Lane, Crouch passou muito longe daquele sentimento de One of our ownque tem marcado nossa história recente. Revelado pela academia na temporada 99/00, Crouchy viu ser negada qualquer oportunidade na equipe principal, que contava com nomes como Les Ferdinand, Chris Armstrong, Steffen Iversen e José Dominguez (quem?). Era o lugar certo no momento errado.

O pequeno grande Crouch em seus primeiros passos como profissional

Tido como desengonçado e pouco técnico por conta de sua estatura (quem lembra do Galvão e seu “O GIGANTE PETER CROUCH?”), Peter Crouch precisou de perseverança para transformá-la em algo menor do que a definição que construiu para si. Em entrevista recente para a BBC, Crouchy falou das dificuldades que teve para lidar com questões que abarcaram sua estima e saúde mental.

Os torcedores podem ser impiedosos. Eu tinha esses complexos. Eu costumava chorar quando criança, quando tinha 14, 15 anos. ‘Eu quero jogar futebol, mas eu não me pareço com ninguém que joga futebol.’

Em um dos meus primeiros jogos pela Inglaterra, no Old Trafford, eu fui vaiado enquanto entrava, e minha família estava nas arquibancadas. Foi horrível, e fiquei pensando em minha mãe enquanto estava entrando, pensando que ela iria se acabar de chorar. Ainda bem que eu fiz tudo certo (naquele jogo).

Após um estágio na Suécia, em uma troca que envolveu um tal de Jon Jonsson (e que também teve zero minutos com a camisa lilywhite), Crouch desceu de patamar e de forma silenciosa construiu seu nome. Vendido por apenas £60 mil para o QPR, teve impacto imediato e em menos de um ano atraiu a atenção do Portsmouth, onde empilhou gols após uma negociação que rendeu £1,5 milhão.

Depois, se a camisa do Aston Villa não lhe caiu bem, sua excelente passagem pelo Southampton o catapultou para suas grandes chances na carreira; A assinatura com o Liverpool que havia acabado de ser campeão europeu e a disputa de uma Copa do Mundo.

Mesmo não sendo unanimidade em Anfield — o que fica difícil se você não marcar nenhum gol nos seus 19 primeiros jogos — , Crouch passou longe de ser um fracasso. Entre seus altos e baix… digo, nesse caso, bons e maus momentos com as camisas dos Reds, o atacante foi essencial em 06–07 para que o clube alcançasse a final da Champions League mais uma vez, onde acabou derrotado pelo Milan. Parecia a temporada da afirmação, até que a chegada de um certo atacante espanhol, meu xará, diminuiu os espaços de quem sempre precisou provar ainda mais o seu encaixe.

O novo começo que se desenhou no Portsmouth foi abreviado por um chamado de difícil recusa. Relações inacabadas sempre pesam para quem sente a necessidade constante de provar para si mesmo, e não para outrem, que não sucumbiu ao fracasso. Era preciso voltar para construir o que enfim poderia vir a se chamar de casa.

O filho não-tão-pródigo retorna (Action Images)

Contratado para suprir o espaço deixado pelo flop de Darren Bent, que rumou para o Sunderland, a inconstância de Pavlyuchenko e as lesões de Robbie Keane, Crouch foi utilizado sobretudo como pivô, dando mais liberdade para as movimentações de Jermain Defoe, que vivia grande fase.

Foi uma temporada discreta. Um golzinho no Birmingham, outro nos 9x1 contra o Wigan, um hat-trick contra o Preston North End e só. Até que o “£15 million pound game” aconteceu.

Com um jogo bem encaixado e propositivo, contando com dois pilares (Luka Modric e Gareth Bale) que se revelariam para o mundo em um futuro próximo, o time de Redknapp buscou a expurgação de fracassos, demônios e lasanhas (reposta esse texto, Letti!) para alcançar o histórico.

Foram apenas duas rodadas fora dos cinco primeiros da tabela e de repente a Champions League não era mais um sonho. Era real. Se tornou real quando a bola rebatida por Fulop achou a cabeça de Crouch naquele streaming instável. Foi real!

Pela primeira vez iríamos para a maior competição da Europa. Se hoje já é algo protocolar, ali não o era!

Corta pra temporada seguinte. Chegam Sandro, Gallas, Van der Vaart, Khumalo e Pienaar. Saem alguns jogadores da base incluindo um tal de Harry Kane, emprestado para o Leyton Orient.

Eliminatórias contra o Young Boys. Fácil né? 3x2 para eles! O sonho sofre um baque. Partida de volta, hat-trick de Crouch e 4x0 no placar. O sonho está vivíssimo. Grupo com Bremen, Twente e Internazionale (atual campeã). Noites europeias.

2x2 com o Bremen fora de casa. Gol de Crouch. 4x1 no Twente. Sem gol de Crouch. Mas teve gol de CHADLI!

Épico em Milão, Táxi para Maicon e uma bela história para contar. Bale é um fenômeno! Show no jogo de volta. 3x1. Batemos os campeões! Teve gol de Crouch. 3x0 no Bremen em casa com outro gol de Crouch. No 3x3 com o Twente não teve Crouch. Mas olha o Chadli aí de novo! Estamos nas oitavas de final.

Tottenham x Milan no San Siro. Jogo duro. Time tradicionalíssimo pela frente. Aaron Lennon arranca, Mario Yepes fica no chão e adivinhem?

Feitos superam feitos.

Se na última Champions nos beliscávamos em meio ao fascínio pela história sendo escrita, o sentimento ali não era diferente. O Tottenham estava nas quartas da Champions contra o Real Madrid. Surreal!

Sonhar acordado era a tônica e a mera possibilidade já suscitava plena euforia. Foram inúmeras narrativas criadas que ruíram aos catorze minutos.

Não cabe a mim explicar — até porque não conseguiria — o que se passou na cabeça do atacante naquele momento. Talvez a vontade de se provar fosse tanta que fazia com que a mera possibilidade do fracasso não fosse uma opção. E com catorze minutos de jogo, 1 a 0 para o Real Madrid no placar e dois carrinhos temerários punidos com amarelo, Crouch estava expulso da partida.

Houve quem disse que teria levado o Tottenham junto mas eu tendo a evitar os “se” em questões de futebol. Faz bem pra sanidade aceitar o resultado preciso do que se atormentar com aquilo que ficou represado no peito e na garganta. E, convenhamos? Não iríamos passar. E vida que segue.

Mas não seguiu.

Após a eliminação, aquele Tottenham que já vinha de uma sequência sofrível abandonou uma briga ferrenha pelo G4 ao conquistar apenas três pontos em cinco jogos, incluindo empates com West Brom e Blackpool em casa. Spursy em sua essência.

Tá vendo essa derrota pro City? Você lembra? Não? Eu conto para você.

A vaca já havia ido para o brejo mas a dignidade ainda resistia. E frear a qualificação do Manchester City para a Champions League do ano seguinte seria um bom indicativo da sua existência.

Porém, contudo, todavia, como o mundo é esse eterno ciclo de altos e baixos, e o de Crouch já havia cavado um belo buraco, em bola cruzada por Adam Johnson, nosso atacante deu um toque de tamanha categoria que apenas a vontade de sacanear Cudicini explicaria o feito. E foi o fim.

Culpado por parte da torcida e pela imprensa, Crouch perdeu espaço e foi negociado no Deadline Day da temporada seguinte com o Stoke onde teve uma longeva e bem-sucedida passagem que não irei ilustrar por aqui.

“Depois de muitas discussões neste verão, eu decidi me aposentar do futebol. Nosso lindo jogo me deu tudo, sou muito grato a todos que me ajudaram a chegar tão longe e a seguir em frente por tanto tempo. Se você me dissesse, aos 17 anos, que eu jogaria a Copa do Mundo, disputaria a final da Champions, ganharia a Copa da Inglaterra e superaria os 100 gols na Premier League, eu te evitaria a todo custo. Foi um sonho absoluto que se tornou realidade”

Aos 38 anos, Peter Crouch anunciou sua aposentadoria. E mesmo que não tenha entrado para o panteão dos grandes craques do esporte, Crouchy foi tão alto ao céu que nem os seus graves erros foram capazes de o levar ao inferno. Para ele foi mais do que suficiente.

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