O inimigo do meu inimigo

Decisões resolutas de Ange fortalecem sua posição como aliado para o futuro

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readNov 27, 2023

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Engraçado como eu fico mais contente com essas derrotas do que já fiquei com algumas vitórias em outros dias. Jogar aquela bola com uns 40% do elenco indisponível é um atestado de que, dando tempo ao tempo, estaremos tranquilos sob o comando de Ange Postecoglou — bem como estávamos antes do violento colapso frente ao Chelsea (e eu não tô falando do resultado).

O que acontece agora com as derrotas consecutivas é puramente fruto de uma sequência de má sorte que engloba músculos estirados, carrinhos mal calculados, decisões controversas, o fetiche de Heung-Min Son por jogar à frente da linha de impedimento e as finalizações que fazem o caminho doce do gol mas são induzidas em direção à trave pelas mãos de Moros, o deus grego do destino e da morte e das criaturas do tártaro, que é cego e invejoso e nunca viu Bentancur jogar bola, então tem como única ocupação hoje em dia evitar que esse time nos deixe mal acostumados de novo.

Só estes detalhes, que apesar de grandes ainda são essencialmente detalhes, nos separam da alegria cabal. Os sinais estão aí pra quem quer ver e tudo de fato gira em torno do treinador, como sempre deveria ser. Ange Postecoglou, afinal, é uma solução objetiva para muitos dos nossos temores porque se mostrou um homem que dá soluções objetivas para muitos de seus próprios temores. Sem desculpas, sem enrolação, sem enrosco. E suas escolhas antes, durante e depois da partida contra o Aston Villa deixaram essa noção mais clara do que nunca.

Já ouviu dizer que o inimigo do meu inimigo é meu amigo? Pois bem, Eric Dier é meu inimigo. E Eric Dier, que é rápido como um projeto de lei cultural e esperto como um invertebrado, também é inimigo do Angeball. Logo, não vê-lo no time titular em nenhum momento do último jogo, mesmo sem nenhum zagueiro de ofício disponível no elenco, faz de Postecoglou meu aliado.

Por essas e outras, tenho certeza absoluta de que o mesmo (ou quase o mesmo) deve acontecer com outras personificações de pesadelos que ainda fazem parte do grupo, como Davies e Hojbjerg, quando chegar a hora. Pois estes dois, junto a Dier, compõem o Triângulo da Tristeza, dentro do qual nenhum técnico, nenhum esquema, nenhum plano é capaz de realmente perseverar. Ver que uma das pontas já está sendo extinta é motivo para celebrar e acreditar que dias melhores virão.

Pra quem não tem jeito se dará um jeito. Ter o Emerson no miolo da zaga nem foi tão feio assim. Mesmo assim, é uma infelicidade o fato do australiano *ainda* não poder se desfazer completamente destes desorientados, muito pelas limitações implícitas na rotina de um time que não é o Chelsea ou o Manchester City, onde até a categoria de base é dopada. E até aí, tudo certo, acontece. Roma não foi construída num só dia porque precisavam esperar a janela de janeiro. Estamos acostumados.

Só é realmente assustadora a diferença de postura e abordagem da equipe a partir desse tipo de tomada de decisão. Começar um jogo improvisando dois zagueiros, sem volante e com ponta jogando de meia só pra manter Dier e Hojbjerg longe do gramado até parece uma escolha controversa à primeira vista, mas no fim é a gente que não tá acostumado com esse nível de racionalidade sendo traduzido em ação prática.

Até Matty Cash (que é chefiado não por Moros no tártaro, mas por Hades nos confins escuros e úmidos do submundo) lesionar Bentancur no fim do primeiro tempo, era como se o Tottenham não tivesse jogadores lesionados, suspensos, inexperientes, sem ritmo ou ruins. Mesmo com uns asteriscos, vimos o Angeball em sua plenitude.

Lo Celso jogou o que não jogou nos último quatro anos e acertou, de três dedos, o único petardo que deixou seu conterrâneo, o louco Dibu Martinez, sem reação em toda a carreira. Porro e Udogie, com os flancos controlados, tomaram as diagonais de assalto. Johnson dominou bolas que Richarlison não dominaria se tivesse oito pernas. Kulusevski parece que deixou de fazer uns dois gols propositalmente por estar achando tudo fácil demais. Até Bryan Gil se engraçou pra cima da defesa do Villa como se não fosse um esqueleto alérgico a carboidratos.

Por fim, quem merece um parágrafo para si é o já supracitado Rodrigo Bentancur, que retornou ao time titular melhor do que saiu, e saiu sendo um dos melhores meio campistas do planeta. O uruguaio joga com um gracejo distinto, fazendo o inimaginável e o especial virarem rotina sem que percam sua beleza. Onipresente, criando para quem joga na frente e apoiando quem joga atrás, controlando o tempo e o espaço com ou sem a bola dominada. Lolo é um futebolista total. Torçamos para que sua lesão não tenha sido grave.

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