O Início, o Fim e o Meio

O que antes era insondável agora parece questão de tempo

Fernando Valverde
Galo de Kalsa
10 min readSep 24, 2019

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Uma das virtudes de uma grande narrativa reside no poder de conectar as três partes que a compõe de forma harmônica: Início, Meio e Fim: Uma progressão linear.

Se não podemos brigar contra a estrutura do tempo, sempre podemos tentar subvertê-la de modo a forçar que, entre as mil e uma perspectivas prometidas ao início, consigamos aquilo que esperamos do final. O triste é que nem sempre dá certo.

Mais de cinco anos após chegar ao Tottenham com um inglês medíocre e vindo de bons trabalhos em Espanyol e Southampton, Mauricio Pochettino vive sob o preço que o seu próprio sucesso lhe cobra.

Ao superar as expectativas daquilo que lhe parecia alcançável, o argentino criou uma dualidade de êxito e fracasso que não parecem estar mais de lados opostos de uma mesma moeda.

Em um mundo de tantas narrativas possíveis como o futebol, títulos não precisam ser vistos como o único fim legítimo. Mas, ao tratá-los apenas como uma questão de ego, puxa para si uma aura que não costuma ser perdoada em um ambiente que cobra tanto daqueles que fracassam.

Se durante muito tempo fomos atormentados pela aura do infortúnio, criando até um adjetivo um tanto quanto exagerado mas nunca desmerecido, agora vivemos algo além. O Tottenham não é mais o azarão que espera achar ouro em um mar de cascalho e sim aquele que, ao achá-lo, parece não saber mensurar o valor do que tem em mãos.

Lá em 1991, ano em que porventura eu nasci, Caetano já alertava que “alguma coisa está fora da ordem”, não necessariamente sobre o Tottenham mas eis que cai como uma luva em 2019. E ainda que esteja muito longe de me juntar ao coro dos insensatos que pedem pela cabeça do maior treinador que tivemos na era Premier League, uma minhoca insiste em se contorcer na minha cabeça (assistam essa série!) e não que eu necessariamente acredite nela, mas só a sua mera existência já revela que algo de errado não está certo.

Ao mesmo tempo que tenho ciência da imensa importância que Pochettino tem para o Tottenham como um meio, me inquieto com o temor que o mesmo nunca terá para si o fim que lhe pareceu escrito e assim sondo o insondável: o adeus pode estar mais próximo do que parece.

O que pode parecer loucura nem sempre é desprovido de razão e cogitar a saída do maior técnico da história recente do clube pode também ser um ato saudável. Ainda que Pochettino tenha plantado a safra, a lavoura sempre esteve e continuará estando lá e o grande negócio é impedir volte a ser infértil.

Talvez Pochettino realmente seja o homem dos meios e os fins fiquem para outros. Talvez sua saída seja uma solução aceitável em uma relação onde as duas partes se amam mas sabem que precisam separar os caminhos pelas inabaláveis circunstâncias da vida. É bom e evita o desgaste. Mas enquanto isso não acontece, SE acontecer, e em meio à profusão de #PochOut e cornetadas por aí, é bom recordar daquilo que parecem esquecer.

O Início (Ou, o sagrado matrimônio)

O início de uma era

Era o casamento perfeito. Um time e um treinador que buscavam um no outro a afirmação que procuravam ter. Um início sem alarde e com aspirações modestas contribuíram para a calmaria de uma relação em que não houve tempo hábil para o surgimento de atritos e onde cada pequena vitória se transformou em um grande feito.

Um sólido quinto lugar na Premier indicou prognósticos otimistas para um time em construção e através da sua forma de gestão, Pochettino provou quão acertada foi a decisão do clube em buscá-lo.

O estilo de jogo propositivo combinado com a promoção de jovens como Harry Kane, Mason e Bentaleb, a nítida evolução de outros como Danny Rose, Kyle Walker e Christian Eriksen e a quase quebra do tabu dos títulos na League Cup, pena que havia um Chelsea no caminho, colocaram o Tottenham nos holofotes como o time do futuro ao qual a imagem de Pochettino estava naturalmente atrelada.

A base sólida permitiu o próximo passo. Jogadores que não renderam (como Soldado, Holtby, Stambouli, Kaboul Paulinho e Chiriches) foram embora e abriram espaço para a chegada de pedras fundamentais no que haveria de se construir no futuro como Son, Alderweireld e Trippier. Ok, teve o N’jie também.

Kane recebeu a 10, Alli surgiu do nada, cortesia do Paul Mitchell, para fazer tudo e mais um pouco e até dói lembrar que nessa época o Dier sabia jogar bola. Era mais do que notável que algo de especial estava sendo formado, o que diminuiu consideravelmente o espanto da constatação de que o Tottenham estava enfim disputando um título inglês, meio que de mão beijada após todos os outros concorrentes se recusarem ao posto, contra a “aberração” Leicester.

Eis a primeira ilusão de fracasso.

Ainda há quem impute ao time do Tottenham o fiasco de algo que nunca se prometeu. Claro que em determinado momento foi possível acreditar mas não dá para se perder algo que nunca esteve inteiramente em suas mãos. E contra um Leicester que se recusava a deixar escapar o alinhamento dos astros que se desenhava, o Tottenham fez o que pôde fazer (e nunca deixem ninguém esquecer de quem passou o primeiro turno inteiro na liderança daquele campeonato). A sensação de fracasso era ínfima frente à esperança do futuro.

O Meio (Ou, A Lua de Mel)

Mesmo no ápice deu pra sentir o gosto do amargo

De grão em grão o galo enche o papo. Ou pelo menos deveria, mas nem mesmo o mais hercúleo dos trabalhos humanos pode se sobrepor contra forças da natureza.

Em uma época onde o sarrafo era menor do que a obscenidade de hoje, onde tem time fazendo 97 pontos e sendo vice-campeão, o Chelsea de Antonio Conte permaneceu inabalável diante de um feroz e resiliente perseguidor.

Eis a segunda ilusão do fracasso.

O orgulho, por mais merecido que seja, tende a ser sobrepujado pela noção nem sempre realista de que um esforço maior seria recompensado. O problema dessa conjectura, é ignorar completamente a definição, nada abstrata, dos limites que lhe são impostos. Ao começo do campeonato, 86 pontos seriam o sonho molhado de qualquer torcedor. Ao fim dele, não foi suficiente. A culpa é de quem?

No canto do cisne no antigo White Hart Lane, o Tottenham fez uma campanha irrepreensível em casa. Como POR DEUS não ganhamos nada nesta temporada?

Mais do que apenas isso, o Tottenham era indubitavelmente o time de melhor futebol na Inglaterra. Se o Chelsea de Conte era pragmático, o Tottenham de Pochettino sabia ser avassalador e definir jogos. Dono do melhor ataque da competição, era comum que fôssemos pro intervalo com 2 ou 3 gols de vantagem contra os times abaixo do Big 6.

Claro que nem tudo foram flores. A patética campanha na Champions League até ligou um sinal de alerta mas não havia motivo para pânico. Nenhum casal é feliz o tempo todo e a consistência em várias frentes era algo que ainda não estávamos acostumados.

Só não precisava da eliminação PARA O GENT na Liga Europa que me faz ouvir piadinhas infames (Mas GENT o que houve com nosso Tottenham?) em pleno 2019.

17–18 é apenas uma nota de rodapé. Claro que houveram grandes momentos, como a traulitada no atual campeão da UCL, mas o estabelecimento do City como dinastia (100 pontos é covardia) e a frustrante eliminação na Champions para a Juventus (ecos de Spursy que pareciam enterrados) fez com que a temporada acabasse na total indiferença.

O Fim?

Narrativas nem sempre são lineares e em alguns exemplos o desfecho é apresentado antes do seu desenrolar. Por motivos óbvios, não dá para prever qual será o fim de Pochettino no comando do Tottenham mas no resgaste de tudo que tem acontecido em 2019, dá para entender porque ele parece tão próximo.

Alguma coisa está fora da ordem no Tottenham e você, eu, Daniel Levy, Mauricio Pochettino, Mauro Cezar Pereira e Caetano Veloso sabemos disso. Ao desenrolar o fio do novelo, a final da Champions mais parece um acidente de percurso, ainda que tenhamos tido autoridade para pleitearmos o espaço naquela final em Madrid, do que a consolidação de algo que foi planejado.

Eis a terceira ilusão do fracasso.

Ainda que as dúvidas sobre o mérito do time pairem no ar, mesmo que geralmente venham de outras partes já que quem torce para o Tottenham apenas absorveu a catarse e aproveitou o momento, a final da Champions foi a epítome de um time a quem sempre faltou consistência mas sobrou lampejos.

O vice-campeonato na maior competições de clubes do mundo é uma posição honrosa. Ainda que a derrota tenha sido dolorida, e admito que preferia tomar 8 do Ajax do que ter sido derrotado pelo Liverpool, a mera presença já fulgura como uma reafirmação de patamar. Diante disso, o que acontece com o Tottenham nesta temporada?

O começo claudicante têm deixado mais perguntas que respostas em um momento crítico do clube. Investimentos, ainda que não tenham preenchido todas as lacunas, foram feitos e uma evolução natural era esperada. Porém, o que muitos não notaram, é que o processo do declínio já estava a todo vapor, eclipsado pelas catarses do Ettihad e de Amsterdam.

Excluindo a Champions League da equação, o que pode até ser injusto mas se faz necessário, o Tottenham não vence fora de casa na Premier desde janeiro quando venceu o Fulham por 2x1. De lá para cá foram nove jogos, sete derrotas e dois empates.

Para além do perder, o grande problema do Tottenham tem sido o como se perde. Ainda que tenhamos passado por problemas de tantas ordens, como a falta de investimentos que tanto pareceu prender o time à uma zona de conforto, aqueles que já estavam no clube nunca deixaram de correr e jogar por seu técnico. Existia uma grande sinergia que ligava técnico e tático e era a força-motriz de uma equipe plenamente funcional como conjunto.

Hoje, essa relação tem parecido cada vez mais ausente. O Tottenham passa a impressão de ter se tornado totalmente desconectado do seu treinador o que vem fazendo inclusive com que o Pochettino tente vários encaixes para ver se engata em um meio que na base da força. E quanto à isso, jogadores também precisam compartilhar a mea culpa que a todos cabe.

Fora o jogo contra o Manchester City, onde tivemos sorte de não sermos massacrados, a equipe tem se portado de forma indolente e deixado escapar vantagens a que não estava acostumado. Arsenal, Olympiakos, Leicester e Southampton se aproveitaram de um time desinteressado, em clara involução tática e técnica, e de equívocos que Pochettino vem cometendo e que vão minando o seu espaço, que possivelmente, o próprio nem faz mais questão de ter.

Se antes manifestava possibilidades de construir legados, em questão de poucos meses Pochettino já cogitou deixar o Tottenham mais vezes (1, 2, 3) do que o necessário causando irritação na torcida que o idolatra.

Sua forma de gerenciamento de elenco sempre foi bem clara, mas os seus motivos nem tanto. Se Alderweireld, Aurier e Eriksen já foram limados do time por não estarem com futuro esclarecido dentro da equipe, a mini-crise com Vertonghen, que parece ter afetado o belga que faz uma temporada instável até então, ficou longe de ter sido explicada.

Escolhas pra lá de questionáveis tem fragilizado ainda mais um elenco parece ter o psicológico de um Baiacu. Sanchez na lateral tem causado pesadelos em qualquer ser que assista futebol e a entrada de Wanyama contra o Leicester, determinante para a virada sofrida, parece desprovida de qualquer análise.

Nem mesmo o equilíbrio tático, vital para outras temporadas, tem passado incólume, muito pelo contrário. Estamos indo para o oitavo jogo da temporada e a sensação até aqui é de um time que sequer sabe qual sua formatação dentro de campo considerando as variáveis da partida (e o jogo contra o Newcastle indicou claramente a fórmula para se anular o Tottenham).

Jogos que se encaixam em um recorte claro de 3 ou 4 partidas nos últimos dois anos onde, talvez por falta de experiência, Pochettino erra e acaba por desmanchar a estrutura que construiu até ali. Porém, mesmo com todos os erros, qualquer papo que insista na saída do mesmo de forma forçada deve passar por inúmeras ponderações.

Se sentimos uma involução nas expectativas da equipe, muito se deve à subida do sarrafo durante sua gestão. Ainda que mascare vários problemas, uma final de Champions League e a presença constante na competição através de campanhas sólidas (e também decepcionantes pois acreditem, pode-se ser os dois) nunca poderão ser menosprezados como meros prêmios de consolação. Fizemos tudo certo, mas os astros recusaram se alinhar.

Talvez ele seja um refém de um sucesso, sempre prometido e nunca efetivamente, se consideramos apenas títulos como o único fim (que fique claro que não é o meu caso), alcançado. Ou talvez a fagulha tenha se apagado e seja mesmo um casamento à beira do colapso.

Mas não custa nada fazer terapia.

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